segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Os lados da moeda

Estamos agora diante de uma situação amplamente divulgada, pouco compreendida e quase sempre assustadora. Então, de repente, somos finitos.

A humanidade falastrona pensa que pode. Nessa massa de seres humanos há os que acreditam, e aqueles que não creem. Crer e não crer são faces da mesma moeda. Porque há dores, também há linimento a essas dores. Não só fim e absolutamente nada. Ha algo mais. Mas a finitude é algo que assombra o homem. Ele anda no arame, equilibra-se na sua arrogância, esmaga e dilacera em nome do seu poder (?), mas não consegue ludibriar o fim quando se aproxima. Decerto ele tem o vislumbre dessa brisa tênue quando ela vem, silenciosamente, no seu bailado rítmico bem compassado. O seu assombro acontece justamente na hora em que todas as portas já não têm mais como abrirem-se. Nem as vozes dos profetas podem resolver o seu impasse cartesiano de apenas compreender como real aquilo que se mede, se pesa, se fraciona. A solidão do seu grito não será menor que a solidão do universo a rodopiar asteróides, planetas, satélites e mundos inimagináveis.

Se antes eu já dissera que a verdade é aquilo que escolhemos acreditar, certamente ao olhar para o céu estrelado de uma noite quente de verão - quando a poluição assim o permitir - entenderemos que além do que nossos olhos míopes podem enxergar existe um infindável oceano de possibilidades, e todas elas tremeluzindo a milhões de anos-luz. O que brilha há muito terá desaparecido. Mas quem dirá que não é verdade que a vemos brilhar lá no alto? Mentiriam nossos olhos míopes? Ou seria fantasia de nossa mente a produzir fantasias?

Infinito e finitude: conceitos que gotejam durante toda a vida em nossas vidinhas comuns. Diante da força do temporal encolhemo-nos. Ela é devastadoramente bela, e perigosa. Mas é finita. O dia e a noite têm suas convergências e vivem de antípodas verdades. A ilusão é somente o fato de que em certo momento a luz escasseia e, por outro lado, abunda em toda plenitude. Contudo, são duas faces reais de um mesmo aglomerado de matéria a rodopiar no seu próprio eixo e sob a ação de forças de atração poderosíssimas.

Há uma ciência nisso tudo, e uma poesia intrínseca. A lógica do começar e terminar é tão evidente, mas ainda há quem menospreze o fato e se recuse a acreditar. O que começa, acaba? O que acaba poderia ter um recomeço?

São questões absolutamente discutíveis. Estão ai, escancaradas e prontas para serem compreendidas. Somos, em certa medida, como que contemporâneos de Galileu, quando este, doido de pedra, disse a todos que não éramos o centro do universo, e que girávamos ao redor do sol. Ah, quão louca se fez a vida deste poeta travestido de cientista! Se não recua, perece. E a Igreja Romana, pretensiosa e arrogante, à semelhança dos fariseus, séculos depois, ela mesma teve que recuar e escusar-se publicamente. Outros tempos, outros homens, outros olhos, um mundo menos obscuro e muito mais submetido às lentes dos analistas. Tudo se discute. Tudo se comenta. Mas quando chegamos àquele ponto crucial, quando o homem é questionado sobre "e o que vem, afinal, depois?", ele se dobra sobre si mesmo feito um caracol e retroage cinco séculos antes, como se tudo que o homem conquistou houvesse sido soterrado numa avalanche de obscurantismo contido.

Veja que tudo isso que se falou é confuso, difícil, quase um porre. E tudo seria apreciável se levássemos na simplicidade das formas com que forma criadas. Mas pusemos nossa inteligência e inventamos a confusão institucionalizada, aquela mesma que existe para confundir, não para esclarecer. Afogados em conceitos e definições, as leis passam a ser questionadas. As mesmas leis que não conseguimos reproduzir em laboratórios, mas que insistimos em confrontar como se fossemos capazes de inventar uma fórmula que perenizasse a vida abdicando a morte. Mas aí também veremos que há os dois lados da moeda. A vida e a morte, de repente, não seriam a mesma coisa vistas de formas diferentes?

Uma bola tem dois lados. Interno e externo. A vida e a morte são xipófagas. Uma explica a outra. Os lados evidentes da moeda. Ou ela não seria moeda, se não houvsse um dos lados.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Escrevendo.....

Continuando o papo de escrever, e depois de ter lido o blog de Debora Val - O Purgatório - onde ela redige as mesmas dúvidas e dificuldades que tratara na primeira parte desse texto, fica aquela pergunta: se é tão dificil, se é um parto tão doloroso, se escrever é quase a mesma coisa que escalar o Himalaia sem tubo de oxigênio, então por que é que nós teimamos e insistimos em escrever?

Na prática a resposta é tão absurda quanto a pergunta. Se algo me incomoda, eu evito. Se algo me enoja, eu passo ao largo. Se algo me aperta, eu me safo. Se algo quer me trazer algum desconforto, que pareça se prolongar, eu procuro me livrar dele. Então, essa coisa de ser "escritor" não é também um grande exercício de masoquismo?

Mas existe uma coisa que muitos não atentaram ao detalhe. Essa coisa de "preciso escrever" decorre do fato de que é algo que, dentro de nós, precisamos expelir. Como quando estamos indispostos. Como quando fomos imprevidentes e nos excedemos na mesa, na bebida, naquela farra não planejada. Vem o after. Sempre quando ele vem é que a porca torce o rabo. O efeito da ressaca é cruel. Mal-estar, indisposição, enjoo. Mas até chegarmos a esse estágio de lucidez, enfiamos as mãos pelos pés ou vice-versa e ignoramos o bom senso e a lógica.

Talvez seja isso o ato fecundo e absorvente de escrever. Traz dores, inquietações, desasossego, mas também produz um efeito inebriante de coisa feita. Eu sei bem o que é alinhar palavra por palavra, umas atrás das outras. Parecem formar um trenzinho infindável a apitar o seu apito irritante de "estou chegando". Chegar nesse ponto da estação da vida, contudo, é barra. Ou como diriam algumas pessoas: é punk.

A sensação de dever cumprido compensa toda loucura de véspera. Ler o que se escreveu e visualizar cada rosto, cada situação, cada diálogo ou até talvez aquele momento que ficou, como já me referi, congelado pela palavra, nada disso tem preço. Cada gota de suor, cada palavra estudada e lapidada, cada termo ou forma de expressão garimpada com esforço inusitado, tudo isso vale a pena depois que você enxerga o fato e ele está ali, presente, sólido feito um rochedo, um fato histórico, uma lembrança, uma ideia, um flash que não poderá ser alterado. O papel do escritor ou de quem escreve não é de validar o absoluto, mas de dar o seu testemunho e dizer que esteve presente, que vivenciou, que participou de alguma maneira, que deu sua parcela de colaboração.

Essa conversa fica comprida e parece não terminar nunca. Na verdade é como enxugar gelo: um trabalho cansativo que parece não sair do lugar. Só que a gente sai do lugar, da mesma forma que o gelo vai paulatinamente perdendo consistência, peso e volume. De um bloco tornar-se-á uma pedra. Uma pedra que parece inofensiva, mas foi uma pequena pedra que derrubou Golias.

Melhor não subestimar as pedras....

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

São Paulo tem prefeito?

Sou um cidadão comum. Eles gostam de dizer munícipe quando se referem a nós. E falo como cidadão comum. Daqueles que andam de ônibus, tem dores de barriga, usam o SUS e pagam religiosamente os impostos, porque são impostos goela abaixo, sem choro nem vela.

Como cidadão comum também tenho opinião. Ocasionalmente palpito aqui e ali. Sou comum, mas não sou alienado. E ao observar um pouco a cidade que me cerca, ou quando paro e ouço as notícias que vêm pelo rádio, percebo certa lógica crítica nessas notícias. Ouço que os investimentos de subprefeituras foram cortados de umas e aumentados de outras. Você me perguntaria que lógica há nisso. A lógica simplista é que as verbas cortadas foram das subprefeituras dos bairros periféricos. Por outro lado, aumentou-se o investimento naqueles bairros, digamos, mais categorizados, onde eles, não por acaso, moram. Explica-se, portanto, os incontáveis buracos no asfalto arrebentado de onde moro, a iluminação tremeluzente de certas ruas, o estado deplorável de lixo acumulado nas calçadas, sem contar, é claro, a sujeira das ruas.

Grande parte dessa situação é culpa do próprio munícipe, é bom que se diga. O cidadão comum é comum também nos maus hábitos. Jogar lixo pela janela do carro, no meio-fio da calçada são procedimentos que denotam má educação. Cria-se a pessoa dando-se maus exemplos e depois não se pode exigir que essa criança, já adulta, tenha esses frissons de civilidade. Por osmose ela acaba agindo de forma reflexa àquele modo banal e deselegante que via dentro de sua casa.

Agora, cortes nas verbas dos bairros periféricos é bem o sintoma característico dos que gostam de maquiar a sua política. No caso de São Paulo o prefeito Kassab, que há muito está fora da mídia, deixou de ser centro das atenções bem depois que ele vetou o projeto que alterava os horários de jogos noturnos. Por questões políticas ou pressões econômicas (não se sabe ao certo qual o real motivo) ele vetou o projeto e a coisa não andou. Ou seja, continuamos a ter jogos que começam às dez da noite e acabam no começo da madrugada – quase ao apagar das luzes do metrô e dos últimos negreiros urbanos. O povo que se lixe! – diria o exemplar político à semelhança de certos políticos do reinado avassalador do Sr. Inácio Lula.

Explica-se as péssimas condições das ruas. Explica-se a ausência de fiscalização de transito somado ao absurdo em que se tornou o transito da cidade. Explica-se o desprezo pela educação formal desses maus condutores, porque a ênfase é arrecadar muito por meio das milhares de multas que são geradas pela indisciplina e a má educação. Quanto mais indisciplinado, melhor. Isso é bom para os cofres públicos, é bom para o governo municipal, mas é péssimo para o futuro da cidade.

Depois que a figura eflúvia do prefeito passou à condição de manifestação espectral, ficamos com a triste impressão que nunca o prefeito de Sampa será igual, vamos citar apenas um exemplo clássico, ao prefeito de Nova Iorque. Lá o prefeito é o chefe da polícia. Lá o prefeito determina e faz cumprir regras e leis. Aqui, se tanto, o prefeito hoje briga para tirar o presidente do partido a que ele pertence, por razões exclusivamente pessoais. O prefeito hoje existe para tentar sobreviver tendo algum futuro político. Não acredito, entretanto, que ele venha a se eleger a alguma coisa algum dia por essa mesma população. Diria mesmo que o prefeito foi um grande fiasco como administrador, um falastrão que vivia dando entrevistas em rádios de São Paulo, mas que depois da tibieza com que encarou o embate com conglomerados poderosos a defender o futebol às vinte e duas horas, o Sr. Prefeito deu um chá de sumiço e sumiu mesmo. De notícia só temos essa: obrigatoriedade da inspeção veicular sob risco de ter o licenciamento bloqueado mais uma multa de mais de quinhentos reais, ruas abandonadas, subprefeituras loteadas e sofrendo toda sorte de manipulação, e por trás dessa triste ópera trágica feita de ironias e inverdades, um patético homem que iludiu muita gente, inclusive eu mesmo, quando se propôs a se eleger para fazer da sua gestão um exemplo de boa administração.

Será que a Lei Seca ainda vigora? E aquela lei que pretendiam promulgar proibindo veículos a andarem com som de suas caixas poderosíssimas no último volume? Não só não aconteceu nada como agora o munícipe é obrigado a fazer inspeção veicular, pagar mais de cinquenta reais de taxa, sob a ameaça (sempre a ameaça) de não licenciar o veiculo e ainda ser multado.

Então eu pergunto: São Paulo tem prefeito?

Talvez o munícipe de outras plagas saiba mais daqui do que nós mesmos.

Infelizmente fica valendo aquele ditado que diz: “Em casa de ferreiro, o espeto é de pau”. Serviu feito uma luva.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Escrevendo......

Pretendi escrever. Mas acho que ficou na pretensão. Escrever é uma coisa dolorosa. Parece simples, elementar, juntar palavras, formas frases, meter um parágrafo aqui e ali, fingir que existe um enredo, e a gente se achando deus.

Escrever é como parir. A mulher até entenderia isso - particularmente as que foram ou são mães. Mas, um homem parindo? Chegaria a ser esdrúxula e esquisita não fosse absolutamente deliciosa a ideia de um homem parindo um filho. Assim é escrever. Por no papel - neste papel virtual que aceita tudo - ou naquela caderneta de anotações de ideias inesperadas e surpreendentes, as coisas que precisa "por pra fora". A gente põe muita coisa pra fora; mas o que vai pela cabeça, ai a coisa pega. Transformar pensamentos e enredos através de um prisma mágico que faz com que ganhem a consistência de palavras inteligíveis é algo muito, muito forte, algo como alquimia ou a descoberta da pedra filosofal ou do elixir da juventude eterna. Aquele momento ficará congelado. Os tempos serão outros, os lugares mudam de lugar, as pessoas vêm e vão, mas aquelas situações escritas não mudarão jamais.

Por isso é que digo que pretensamente quero escrever, e de repente eu percebo que não é lá tão animador ir juntando palavra por palavra e fazendo a gestação de um mundo imaginário que vai se mostrando capaz de ter vida própria. A mesma responsabilidade de ter escrito algo bom tem, por sua vez, a contrapartida de que, em dado momento, o arrependimento sobrevém àquelas coisas que não deveriam ter sido escritas. Nem tudo que se escreve é merecedor de valor. E o pior crítico, sem dúvida, é o autor de seu próprio texto.

Nem há por que se preocupar em ser algo que faça um retumbante sucesso, que esteja nas mãos de todos, que todos leem e gostam, que faz o furor da crítica, que chega a balançar os alicerces da moral e dos bons costumes. Nada disso. Nem todos terão a mesma sorte. O mesmo destino. Nem todos têm o privilégio de ser agraciado com premios. Muitos - e são vários os nomes a citar - ficaram com a fama, o respeito, mas não o reconhecimento. Isso os tornaria menos valorosos?

Eu acho que sou alguma coisa do tipo "escritor", mas não me vanglorio nem me enaltecço por isso. Teria algum motivo?

Acho que vou continuar depois esse papo.....




segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Despedida

Esse dia tinha que acontecer um dia. Sem trocadilhos. Sem piadinhas infames. Apenas dor no coração. E esse dia chegou ontem. Uma incontida inquietação, um profundo desconforto, um mal-estar a incomodar feito dor de cabeça ou qualquer coisa nesse sentido. A pressão do mundo nos ombros, a dura hora de tomar decisões. Não tem coisa pior. Principalmente quando elas não atendem aquilo que vai pelo seu coração. Mas assim é a vida. Assim sempre foi a existência humana. O homem e seu eterno dilema diante da Vida, a ignorância pelo que há-de vir, o medo do enfrentamento, a tentativa nem sempre bem sucedida de fingir um heroismo inexistente, o suor, as mãos trêmulas, uma raiva imensa socando a cabeça feito um boxer indo a nocaute. Esse dia teria que chegar, tão inevitável quanto a morte, as más notícias, o cansaço depois de muito trabalhar, o arroto que se dá após comer feito um boi, o voo dos filhos que deixam o ninho, o olhar a perder-se no horizonte assintindo a mais um fim de dia... Esse dia chegaria como o raio que antecede a borrasca, o grito da torcida depois daquele gol de placa, o apupo dessa mesma torcida acariciando os nervos do árbitro e a memória de sua 'santa' mãezinha. Um dia duro, difícil, inevitável. Essa palavra, por si só, parece algo que traz uma grande carga de coisas ruins. Negativas. A inevitabilidade de tantas coisas. Há pessoas que se desviam do curso natural da Vida apenas porque receiam enfrentar certas situações. Detestam os improvisos. Fogem feito o diabo diante da cruz das coisas chamadas inevitáveis. Mas a própria Vida é uma sucessão de atos inevitáveis. E esse dia faz parte do teatro repleto de atos contínuos de atitudes previsíveis e imprevisíveis. De modo geral, conviver com as perdas não é uma coisa agradável. Doi muito. Incomoda. Aguilhoa feito espinhos. Como cravos a pregar na cruz o Homem Santo. Esse dia pintou-se de final de domingo. Noite fria. Noite úmida. Noite tipicamente paulistana, uma noite de quase inverno na primavera.

Cortei as ruas de uma cidade repleta de carros de farois altos a zumbir feito um enxame de abelhas enlouquecidas. Um domingo molhado, de pistas escorregadias. Janelas fechadas, parabrisas respingados, o som da despedida ronronando atrás de mim como lamentos e pressentimentos, a minha cabeça não querendo assimilar nada daquilo.

O antigo bairro israelita agora dá vez aos bolivianos e coreanos. Mas àquela hora um silêncio de bairro adormecido, mesmo que fosse apenas pouco mais de nove horas da noite. Mas que se esperar de um domingo de antevéspera de feriado religioso? A calçada irregular de paralelepípedos esconde a história de quantos por ali passaram. A viela é estreita, o chão irregular de pedras mal assentadas. As paredes altas e cinzentas não têm o charme de um filme noir, nem de romances clandestinos. Leva-me mais a imaginar que é um local de cena de crime.

Abri a porta da caixa de transporte de animais. Cada um deles foi saindo. Ressabiados. Temerosos. Uma aventura terrível, sem volta. O último, ainda mais relutante, foi tirado a fórceps. O caminho estava livre. A viela totalmente exposta a recebê-los. Não eram convidados. Eram apenas extraterrestres caindo à noite num lugar estranho, escuro, mas que prometia uma convivência em comunidade - longe da prisão, da opressão, da reclusão imposta.

Não tive coragem para conferir onde tinham ido. Eles apenas foram. Sumiram na noite. Esconderam-se no manto das sombras. Talvez eles tenham melhor sorte, agora.

Esse dia tinha que chegar. Não há como disfarçar a emoção. A covardia. A dor no coração e na alma. Mas foi apenas uma despedida silenciosa. Pensei: boa sorte, menino e meninas. Acho que nunca mais verei vocês. Mas acho que será melhor. Agora, pelo menos, vocês terão a chance de viver como a natureza os fez.

Nesse dia eles ganharam a liberdade sonhada. Dizem que os gatos são animais noturnos. Agora, mais do que nunca, eles têm a grande oportunidade de vivenciar essa realidade. O que mais doi é que, com certeza, nunca mais eu os verei. Não tem coisa pior que despedidas.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Ad Aeternum

Algumas vezes temos olhos para olhar. A boca, para falar. O céu nos cobre e as nuvens mudam de formato. Nem tudo, porém, percebemos. Não controlamos nada. A vida instala-se e deixa-nos na hora que quer e quando quer. Os nossos dias são tão ligeiros como o rosto do vento. Nunca veremos o mesmo pássaro duas vezes no mesmo lugar. E os Viadutos do Chá da vida sabem bem do que falo.

A mão tem dedos, e todos diferentes. As famílias têm filhos, parecidos e tão distantes. O cinema mostra o último desastre cinematográfico, feito de milhões de dólares. O rosto do galã é apenas uma máscara. A sua vida é um borralho. E as drogas trafegam pelas avenidas como damas noturnas distintas e respeitáveis, aliciantes e nervosas.

Ontem foi carnaval. Amanhã eu digo que fui. Hoje eu sabia que era amanhã. Agora já não é mais. Olho e não leio o Tao. O píncaro da igreja é um galo. Além da montanha azul reside o espaço negro da chuva de agosto. Enchemos nossas mentes de informações. Sonhamos com diagramas indecifráveis, como hieróglifos. O tormento do insone é não conseguir conciliar a vida e o silêncio da morte que deita ao lado.

Afagam-se, casais trêmulos. Nada, porém, é exatamente como é. Já não é mais. O rosto no espelho era. Agora tornou-se outro. Enfim, a vida é uma imensidão de rugas. A miopia apenas acelera o processo degenerativo. A mente vibra. O corpo, dormente, apenas respira.

Os livros amontoam-se nas bibliotecas desertas. Os prefeitos e vereadores andam na faixa exclusiva, o fiscal do CET olha passivo e finge que não vê. A placa denuncia. Além do Palácio há uma monte de favelas agrupadas. Os corpos esquálidos não são de Biafra. Vieram do Norte. Lá, bem lá, onde não há água. O homem continua dizendo que progredimos. Enriquecemos. Ficamos mais acessíveis.

O boi morreu de sede. Vidas Secas e Graciliano se cruzam no mistério da verdade que os homens esqueceram. Fabiano e a Baleia são figuras enigmáticas. O Brasil viaja nas ondas curtas e médias dos rádios entupidos de vozes ariscas, abobalhadas e de convesas inúteis. A notícia? Ela se renova todos os dias. As velhas remoçam. Fazem plástica. Voltam à juventude. São sempre notícias.

Aqui, dezenove horas. A Voz do Brasil silencia. É hora de deitar a cabeça, conciliar o sono, esquecer o Serasa, o banco, as financeiras. Amanhã, que será logo mais, tudo voltará a ser real.


terça-feira, 5 de outubro de 2010

O Balanço

Fazer balanço não significa amarrar uma corda num grosso galho, uma tábua sem arestas como assento, e transformar uma ideia numa brincadeira. Fazer balanço quer dizer - vou parar para repensar tudo que já fiz.

Aliás isso é o que o ser humano costuma às vezes fazer. Nem sempre. Mais erra do que acerta. Mas ele tem consciência. O que mostra quão próximo está do animal, e quão distante está de ser igual a ele. Exceto pela dor, alegria, fome, frio, percepção do perigo, necessidade de estar junto de seus iguais, homem e bichos não têm muita coisa em comum.

Contudo, o eremita prefere a solidão à multidão. O animal ao lado sentado ou deitado, respeitando o silêncio do homem. Se este se ergue, ele ergue a cabeça e fica de prontidão. Se o homem fala com ele, ele retruca ao seu modo. De modo geral conversam. Cada um na sua lingua. E magicamente se entendem. O divórcio entre homem e bicho é muito raro. Diria quase impossível. As separações dolorosas, entretanto, são comuns. A morte costuma cortar esses elos de amizade. De fraternidade.

Então, por quê fazer balanço? Acho que é a idade. Ou aquele momento da vida que a gente para e fica como que numa encruzilhada. Tem gente perto. Tem trabalho. Tem familia. Tem amigos. O céu, o chão, tudo parece muito igual, como sempre foi. Mas não é bem isso que a gente entende. O balanço é uma forma de por as coisas nos seus lugares. Muita coisa fica desarrumada. Como numa casa onde muitos moram e poucos se preocupam em manter a ordem. A vida urbana primeiro entorpece, depois vai roendo. Quando nos damos conta já estamos pela metade. A vida passou, as coisas foram acontecendo, certas situações não podem mais ser mudadas. Se tanto, podem ser compreendidas. Ou esquecidas. A memória valha algumas vezes. Rostos somem. Nomes. Lugares. Cheiros. Aspectos de perigo ou de prazer incontido. Aquele momento tão esperado. O Papai Noel que não veio e frustrou. O presente que não foi bem o que eu queria. A reprovação. O diploma duramente conquistado. O emprego que decepcionou. A carreira que ficou pelo caminho. Amigos que se foram sem dizer adeus. A primeira namorada que nunca mais viu. Aquelas velhas casas que hoje dão lugar a prédios assépticos, de concreto, cheios de vidros e absolutamente impessoais. Não vemos mais árvores. Nem jardins. Cachorros nas ruas são muitos, mas não aquele pequeno fox paulistinha, nem o pastor alemão do vizinho. O delegado empertigado, andar duro feito um pau rolando pela calçada, mas simpático o bastante para cumprimentar uma criança.

Fazer balanço. Mas a gente fica pensando todo o tempo. Vamos ao passado, ficamos lá um bom tempo. Voltamos ao presente, o barulho atormenta e cansa. O cheiro de fumaça sufoca. A poluição é um fato que nunca se viu antes. Ai então tentamos ir para o futuro. Mas ele é tão intangível, improvável, construções feitas de fumaça, lugares sem definições de cores e traços. O céu não tem uma cor definida. As pessoas são dificeis de serem imaginadas mais velhas. A única coisa a acenar por ali é a figura esquiva da morte. Mas ela é sutil, bastante educada para não se mostrar de corpo inteiro. A percepção momentânea faz com que a chamemos para tomar assento na conversa, mas logo a dispensamos. Ela não fala. Ela é paciente, espera. O futuro é chato. Criança não gosta de pensar no futuro. Ela vive o momento atual, já, este instante. Não guarda reservas para gastar amanhã. Amanhã ela transforma seu entusiasmo inocente em novas energias para novos folguedos e novas travessuras. Por isso é que criança gosta de balanço, não de fazer balanço.

Chega, porém, o momeno intrinseco da realidade. Abre-se os olhos pela manhã. Olhos empapuçados, enevoados, a cabeça parecendo descolada do pescoço. A sensação de que o sonho há pouco vivenciado ainda está ao lado tentando manter sua presença efêmera e esfumaçada. O jato de água do banho faz com que toda a névoa da noite se dissipe e o dia, mesmo nublado e sem os raios acolhedores do sol a nos aquecer o rosto, indica que é mais um dia. Um novo dia.

Ele também fará parte da história desse balanço. E adultos que somos não iremos desfrutar da alegria mágica da criança que ainda somos, nem nos atreveremos a nos sentar num assento solitário em algum parque público, e dar bons impulsos e nos entregar à exuberância de sentir o rosto fustigado pelo vento a lambê-lo e a beijá-lo, os cabelos esvoaçando, querendo chegar às alturas do infinito. O balanço que nos alegraria tanto cede vez ao outro, aquele que quase sempre trará velhas feridas e cicatrizes à luz do dia, ou da noite, e em vez de ficarmos felizes com os pensamentos, talvez choremos de saudades, ou nos irritemos com certas coisas que gostariamos de não ter feito.

O balanço que nos balançava será outro - será agora aquele nos balançará perturbadoramente por dentro.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

No dia seguinte

No dia seguinte, tudo voltara ao que era. As casas refletiam o seu brilho acanhado, de paredes encardidas, aquela sujeira de velhice, de maus tratos, e os jardins ainda regorgitavam o aguaceiro da tarde anterior.

Ibrahim foi à padaria. A mãe lhe recomendara que trouxesse o pão e o litro de leite. "E cuidado pra não quebrar outro litro!" ela recomendou, não sem ser bem ouvida no seu linguajar arrastado. Ele acatou a ordem, dando dois pontapés em uma bola imaginária, e saiu às pressas pelo portão de madeira, que se abriu e se fechou ruidosamente. Ela a olhá-lo meneou a cabeça, como que sem entender, mas não negou dar um sorriso de satisfação. Afinal, aquele era o seu filho.

Stan, ao contrário, ainda acordava. Era um garoto que adorava dormir. E tinha uma rotina interessante, sendo ele um garoto introspectivo e ligeiramente míope. Ergueu-se, a mãe ralhava que se atrasaria para a escola. Antes mesmo de lavar o rosto ele foi à escrivaninha, abriu a gaveta, tirou um caderno de capa dura azul-marinho, pegou a caneta tinteiro do pai, que usava na escola, e rabiscou algumas linhas. Leu o que escrevera, concordou com a cabeça, e tornou a guardar o caderno.

À porta, encontraram-se os dois. Ibrahim estava feliz. Vivia feliz. Parecia sempre ter visto o passarinho verde, como falava Dona Iva ao vê-lo. O marido dela, um alfaiate que tinha uma perna de pau, sempre lhe pedia que fosse ao armazém comprar cigarros. Era um homenzinho atarracado, cabeça redonda e achatada, lábios grossos e lentes igualmente grossas nos óculos de armação de tartaruga. A voz era rouquenha. Dona Iva, ao contrário, era magra e mais alta do que ele. Tinha um nariz grande e era simpática.

- Viu passarinho verde novamente, Ibrahim? - ela perguntou, quando passou por ela.
- Não senhora - respondeu.
- Tanta felicidade assim até dá inveja - ela falou, sorrindo para ele.
Ele retribuiu o sorriso, deu dois ou três socos no ar, e a mala às costas mal conseguia equilibrar-se. Se fosse gente, a mala seria o peão a domar o potro bravo. Mas aquela "braveza", na verdade, era a energia excessiva do garoto de cabelos crespos e castanhos. Os traços lembravam um marroquino, um judeuzinho. Mas Ibrahim era filho legítimo de uma boa cepa espanhola. O pai até explicava que, no passado, talvez, quem sabe, houvesse mouros metidos no meio. E ria. Assim como Dona Iva, vivia a bradar uma falsa braveza e ria-se quando o assunto era o seu hijo.

- Sonhou de novo? - perguntou ao Stan, que o seguia às duras penas.
- Por que quer saber? - Stan perguntou, olhando-o. Mas continuavam a andar.
- Você sempre sonha - ele respondeu. - E cada vez é uma história maluca que você conta.
- Maluca uma ova! - ele replicou.
- Tá bem - ele contemporizou, rindo. - Apenas diferentes, né?
Stan nada disse. Não valia a pena responder. Ele não ouviria mesmo.

Na escola era sempre aquela bagunça. Um tal de chutar as bolsas dos amigos, o servente correr atrás dele pelas diabruras, e as incontáveis vezes que ia visitar Dona Idalina, na diretoria. Mas era sempre com a mesma volupia e renitência que ele passava boa parte dos seus dias procurando arreliar os colegas, ainda que por Stan ele mantivesse sempre um cuidadoso afeto para não magoá-lo, mesmo quando havia chances reais de aprontar alguma confusão com ele. Estava no seu temperamento. A hiperatividade era uma característica sua. Como dizia sua mãe: "esse moleque acordou com tudo" e assim era.

O Marcos-Baleia, o gordo da turma, era sempre a sua vítima preferida. Gostava do Baleia, só a Dona Rute, mãe dele, é que queria ver o capeta, mas não queria ver o Ibrahim por perto. Detestava-o porque depreciava demais o aspecto físico do filho. Mas ninguém tinha culpa de o Baleia ser gordo, ele comentava. E nunca se sentiria com remorsos pelas troças que fazia.

Stan seguia-a como um cão fiel e sequioso pela próxima invencionice do amigo. Mas também ruminava as imagens que tivera e que escrevera no seu diário. O ar meio distraído conferia-lhe, às vezes, aquele aspecto anuviado de quem nem se dá conta que está vivo. Mas Stan era um garoto inteligente, infinitamente menos agitado que Ibrahim, mas bastante sensato para conter, em várias ocasiões, as maluquices do espanholzinho.

- A gente se encontra depois da lição? - e Ibrahim já premeditava alguma coisa.
- Acho que sim - Stan respondeu. - Vou ver se minha mãe precisa de alguma coisa de mim.
- Depois você me fala?
- Falo. Mas está pensando alguma coisa?
- Pensando em dar uma escapada até a rua de baixo.
- Jogo contra? - Stan perguntou, interessado.
- Aham - ele resmungou, já cogitando algo. - A bola é deles. Vamos chamar o Deco, o Gordo pode ficar na defesa, tem o André sobrinho da Dona Jacqueline, também o Renê, irmão dele.
- Mas ele é fraco de bola1
- Mas sabe dar umas canelas... Depois o pessoal da Mariz não é lá tão bom assim. A gente até pode ganhar...
Riram. Uma anedota que só eles compreendiam.
Na porta, a mãe de Ibrahim já dava dois bons berros para que ouvisse.
- Hora do almoço - vaticinou. - A gente se vê mais tarde.
Deu um tapa no ombro de Stan, e correu. A mãe deu-lhe um abraço, envolveu seus ombros e entraram. Stan ficou ali a olhá-los. Até chegava a pensar besteira, nem parecia mãe e filho. Parecia mais coisa de irmãos.
Olhou para a própria casa. Silêncio. A mãe nunca lhe dera uma abraço, e muito menos no portão. Olhou para o céu. Azul. Luminoso. Sentiu o ar perfumado vindo dos jardins da casa do Nurimar, a menina bonita que tinha umas marcas de feridas nas pernas.
O seu coração bateu um pouco mais forte. Entrou.
Era hora do almoço.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Tarde de chuva

As crianças ficavam sentadas no alto do muro, as pernas jogadas para fora em direção à rua, e cada pessoa ou veiculo que passava seus olhos acompanhavam com a mesma atenção e curiosidade. Às vezes olhavam-se e riam, como se a piada, que só elas ouviam, fosse tão divertida para arrancar delas sonoras gargalhadas.


Podia-se dizer que estavam alheias a tudo e a todos. Para elas o mundo que passava à frente tinha nenhuma importância, exceto para aquele momento de diversão. Assim que veículos e pessoas desapareciam na distância, elas voltavam seus olhares para a próxima atração que viesse, nesse brincar insaciável por novidades.


O muro era uma velha construção da década de 1920, um bairro que fora povoado por imigrantes eslavos, do Leste, colados ao bairro dos espanhóis e italianos. A divisão de ruas era apenas um limite transponível que elas usavam e abusavam, sem a menor cerimônia. Eventualmente faziam incursões, como um bando de vândalos ensandecidos, no quintal da francesa Jacqueline, cujo marido vivia entrevado numa cadeira de rodas e enrolado num cobertor. Ele ficava no jardim de inverno, olhando a rua, os pedestres, os vizinhos a lhe acenar, aos cumprimentos educados das velhas senhoras a voltar da missa matinal, sempre com aquele olhar cansado e paciente.


Os garotos podiam muito bem entender, mas não era época de entendimentos. Aquilo era apenas um fato corriqueiro, que eles sabiam existir mas cuja explicação de “por que existir” não lhes afetava o senso nem tirava o seu sono. Dos folguedos, pequenos atos criminosos de roubos fúteis, aquilo era farra, era riso, era a magia da infância das ruas. A cidade ainda era um conjunto lógico de pessoas a viver com regras e mínimas gentilezas e educação. Jamais haveriam de imaginar que, anos depois, a rua se tornaria apenas um corredor de escritórios, consultórios e alguns espigões gigantescos, e as velhas casas de pé-direito baixo algo que ficaria apenas na lembrança deles.


Mas ali, no muro, eles chupavam laranjas, estavam descalços e a algazarra era um passatempo ingênuo de crianças em um mundo menos marcado pela violência e pelos vícios criminalizados. Se tanto chegavam a conhecer níveis extravagantes de vícios, isso se devia às referências dos pais a apontar disfarçadamente quem eram os maconheiros do bairro. Crack, cocaína, heroína eram ainda neologismos, que o tempo colaboraria em tornar palavras correntes e usuais.


Um vento abafado com cheiro de terra molhada batia em seus rostos. Os cabelos ruivos do garoto contrastavam com os crespos castanhos-escuros do outro. Stanislau era filho e neto de polacos. Ibrahim, ainda que tivesse nome árabe, era filho e neto de espanhóis. Com o passar dos anos iriam entender certas peculiaridades da Península Ibérica e a rudeza de vida do Leste Europeu sob a mão de ferro do comunismo.


Foi Stan quem cogitou que choveria. Ibrahim olhou para o lado e as nuvens já se carregavam de tons cinzentos e um negror que prometia. Alguns riscos sutis de luminosidade, e um estridular que vinha de longe, indicavam que era chuva, e da brava.


Irina Del Manto, a mãe de Ibrahim, saiu ao portão e acenou para o garoto.


- Sua mãe tá chamando – Stan disse. Ele chupava um bagaço esboroado de uma laranja que prometera ser suculenta.


- É, ela não gosta que eu fique na rua quando vai chover. Ela tem medo.


- Medo, medo do quê?


- Não sei – ele respondeu. - Algum medo igual ao dela. Ela tem medo de chuva, de trovão, de relâmpago.


- Nunca ouvi dizer que alguém tivesse medo de chuva. Chuva não mata.


Ibrahim pensou, olhou para ela, olhou o amigo, acenou para ela e voltou a falar com ele:


- Pode ser. Mas ela tem medo. Deve ser alguma coisa quando veio para o Brasil.


- Os velhos sempre dizem coisas gozadas e esquisitas. Meu avô vive dizendo umas coisas que aconteceram que eu nunca entendi. Eu finjo que estou entendendo só para não desagradá-lo, mas na verdade não entendo nada.


- É, eles têm um monte de esquisitices. Mas vou ter que entrar. /


Pulou para o chão num salto, olhou para o amigo e prometeu que voltaria no dia seguinte. O ruivinho meneou a cabeça confirmando.


As gotas eram grossas e ao toque com a pele pareciam bolinhas de gude. Explodindo atenuavam o impacto inicial. O céu se fechara subitamente. Stan desceu tão rápido quanto o amigo, viu quando entrava pelo portão acompanhado da mãe, que sempre tinha um lenço florido na cabeça, e não esperou que sua mãe viesse aos gritos chamá-lo daquele jeito nervoso, em polonês, que era o idioma que conversavam dentro de casa.


Não demorou muito para o mundo desabar com ventania, o aguaceiro intenso e os estrondos dos trovões acompanhados de perto pelas faíscas alucinadas que saiam de dentro das escuridões das nuvens.


Era um fim de tarde comum, exceto pela chuvarada e pelo cheiro intenso e provocante de terra. A vegetação vibrava ao toque devastador dos ventos a lavar tudo, sem ignorar os mais recônditos lugares. Naquele momento solene ninguém contestaria a supremacia da natureza, e a solução era esperar a chuva passar para poder assistir a Sessão Zig-Zag, se a energia elétrica não acabasse antes.



quinta-feira, 24 de junho de 2010

O Céu e o Inferno

A mentira não é apenas faltar com a verdade, mas também ir além dela.

Porque estamos vivos, temos o direito de permitir que os outros vivam. Mesmo aqueles que nos ofendem, nos magoam, nos fazem sofrer. Mesmo aqueles que renegam o valor da vida tirando-a dos outros, como se a isso fossem autorizados. Mesmo aqueles que, respeitando as regras e as leis, no seu silẽncio permitem que outros façam o serviço sujo e maldoso de eliminar, destruir, tirar do caminho os seus oponentes ideológicos ou meramente os que interferem em seus mais rasteiros interesses.

A lingua é obra divina, porque é pequena como o leme de um navio. E assim como o instrumento náutico, que dirige a grandeza de uma fragata, também assim é com o homem: ela faz com que vá ao Paraiso, mas também o lança irremediavelmente no Inferno. Disse se agrada Deus, quando o tem para Si. Assim também se agrada o Diabo, porque toma para ele o que não lhe pertence. Mas como bom "fazedor de mentiras", ele se compraz com a nossa estultícia. Se agrada e estimula. Patrono dos mentirosos contumazes, dos mentirosos ideológicos, dos mentirosos por hábito, o Diabo é o senhor daqueles que gostam de desfazer o que está feito apenas pelo prazer de refazer equivocadamente todas as coisas que deveriam continuar do jeito que sempre foram. No caso presente, dos dias atuais, seriam os motivos que têm levado os homens a se autodestruirem, seja nas guerras, seja apenas pelo fato de crueldade e perversidade.

Os olhos têm a capacidade de discernir o que lhe passa à frente. Podem perscrutar os movimentos graciosos da menina nova que passa, a esbanjar sua graça e sua beleza, mas também serve para perceber a imundície dos cantos escuros sob as pontes e viadutos, o olhar que confiar o olfato quando se nota aquele fio de água supostamente limpa, que na verdade nada mais é que esgoto a céu aberto. Os olhos são as janelas da alma. Já definiram e redefiniram várias e várias vezes os olhos. Mas eles continuam a ser apenas a abertura que, com a ajuda da luz e do mínimo de inteligência possível dentro de um cérebro, pode ter consciência das coisas que giram ao redor de um corpo definido no tempo e no espaço. Eles são o motivo da grandeza ou da miséria. Eles veem a beleza, mas também podem cobiçar essa beleza e, por vingança ou resssentimento, destrui-la. Certas obras mostram isso claramente. Uma das mais famosas, e que mais marcaram a minha juventude, foi a obra de Victor Hugo, transposta para um belo filme em preto e branco, de 1939. O Corcunda de Notre Dame, na sua beleza plástica, transportaria a minha imaginação para os remotos anos dos século XVI, e ilusoriamente poderia antever a época em que a catedral de Notre Dame ainda estava sendo construída. E o desejo cobiçoso e luxuriante de Frollo e a beleza selvagem da cigana Esmeralda. E tudo realçado pela beleza irretocável de uma Maureen O'Hara bela, ruiva, de olhos verdes e no frescor dos seus dezenove anos. Os olhos de Frollo conspirariam contra ele, e seu cérebro atormentado iria colocá-lo sempre na encruzilhada do "eu que é que posso e devo fazer?". Entre o amor (carnal, visceral, luxurioso) e Deus (paz, harmonia, castidade), o pobre Frollo seria condenado por suas próprias vontades e desejos, porque os seus olhos um dia pousariam sobre o corpo de uma donzela esvoaçante e sensual, de origem cigana, e que tinha a liberdade gestual de sentir prazer na dança, nos volteios do corpo, nos movimentos graciosos de sua anatomia privilegiada, mas nem por isso ofensiva. O pobre Frollo perder-se-ia na vida apenas porque nunca entendeu que o que sentia era também uma variável dentro da obra da Criação. Por ora diria que Esmeralda foi sua perdição, mas porque Frollo tinha a carapaça mentirosa dos puritanos que, no escuro secreto de suas mais íntimas intenções e pensamentos, exaltariam a luxúria com estupros, fantasias eróticas e, talvez, por uma questão fisiológica, dar-se-iam o direito de concluir o prazer solitário com suas desesperadas mãos.

Mentira, prazer, olhos, mente, pensamentos, cérebro, Criação, Deus, Diabo... conceitos altamente confusos que inundam a vida do homem e fazem com que ele se torne uma forma ambulante e inconclusa de enciclopédia onde convivem verdades e mentiras, gestos nobres e atitudes ordinárias e vis, sentimentos angelicais e febres cozidas pelo fogo da paixão destruidora. O Céu e o Inferno vivendo no mesmo condomínio, e sob a atenção do mesmo síndico.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Questionamento

Quero apenas saber:
- Afinal, que é Deus para mim?
Na juventude desesperado eu clamei,
E em altos brados disse, como um ser frustrado e infeliz:
- Quero morrer!
Quem me ouvia era aquela que me deixou
E de quem não me despedi por falta de tempo.
O tempo que hoje escorre por entre meus dedos.
O mesmo tempo que me permite questionar os porquês.
Por que devo ficar pensando nisso, agora?
Mas afinal, o que é Deus para mim?
Ele me deixa solto, livre, apto para fazer tudo que eu queira.
Ele não diz que não devo.
Ele não me impede.
Ele não manda anjos ou exércitos cercear-me como fariam os tiranos.
Ele apenas me acompanha e tem paciência.
Toda paciência da Sua eternidade.
Minhas aflições ele acompanha.
Talvez fale-me ao ouvidos, que ouço do jeito que sei ouvir:
- durante meus sonhos.
Ele me fala. Talvez fale, não sei. Não posso garantir. Não tenho certeza.
Acho que pode fazer isso. Ou não.
Por que deveria fazer isso comigo? E os outros bilhões de seres?
Seria igual para eles também?
Já não tenho interesse em saber de onde vim, por que aqui estou,
Nem para onde irei.
Irei para o começo.
Aqui é apenas a continuidade.
Ontem foi hoje do passado que não me modifica mais.
Passado é passado e pronto!
Minha mãe ouviu-me, e onde estive, ainda deve ouvir-me.
As mães sempre ouvem. Não importa onde estejam.
Talvez ainda nos vejamos.
E meu pai também.
A mesma presença indefinida de uma noite passada,
Quando nos visitamos. Não sei o lugar. Não sei a hora. Nem o dia.
Apenas um lugar atemporal, sem rostos, sem detalhes, sem desperdício de vernáculo.
Morrer é como dormir.
Adormecidos ficamos prostrados e a morte é uma forma solene de silêncio.
Dar um passo além e ultrapassar o limite.
Que limite é esse? Não sei dizer ao certo onde começa.
Existe.
Está ali, aqui, acolá. Mais além. Além do além do além.
De repente como um espirro. Ou uma piscada de olhos.
Ou um suspiro de alivio.
Ou um passo após o outro.
Fulminantemente rápido, preciso, pontual.
Nenhum gesto teatralizado, nenhum sentimentalismo piegas,
Nenhuma representação fingida dos atores que mentem vivendo vidas alheias.
Morrer e morte são palavras.
O fato, em si, é apenas... acabou.
Como uma nova mensagem.
Ou uma nova história.
Um outro livro.
Ou aquelas figuras apagadas daquelas fotos esquecidas nas gavetas.
"Quem é este aqui?" alguém pergunta olhando a foto esmaecida.
"Seu bisavô" é a resposta.
Mas, que valor ou significado terá para quem ouve a resposta?
Absolutamente, nenhum.
Não se valoriza quem não conhecemos.

Pretendia soltar os bichos...

Apenas pretendi. Mas não o fiz.
Deixei que a calma retornasse.
Não, não foi fácil.
Centenas de sugestões ruins rodearam minha mente.
Esbravejei.
Chutei.
Mordi.
Enfureci.
Quase, e por pouco, perco a razão.
A razão de ser um bicho racional.
Bicho racional que gosta dos bichos.
Não os que atormentavam. Os outros bichos.
Finalmente, a calma.
Ufa!
Quase fiz merda!
Serenou-me os animos a lufada de bom senso.
Veio em ondas calmas,
Quase imperceptíveis.
Mas com força.
A força do bom senso e da calmaria.
Uma truculência persuasiva e calmante.
Uma forma de brochar, sem perder o tesão.
A vida é um grande tesão.
O amor é uma semente que gera flores e frutos,
E precisa ser regada e cuidada com carinho redobrado.
Coisa que o ódio, feito trator, destroi em segundos.
Sem remorsos.
Sem sentimento de culpa.
Sem nada.
Apenas a satisfação (mórbida, é verdade) por destruição.
Eu me senti um acrobata no arame, a se desequilibrar.
Pendendo de um lado a outro, feito um joão-bobo.
Mas as asas bateram ao lado e detiveram a queda.
Deixei a fúria de lado.
Deixei a raiva.
A insânia dos momentos perturbados.
Sai da asfixia e respirei fundo, com se voltasse de um longo mergulho aflitivo.
Pretendia soltar os bichos...
Soltei, mas eles evaporaram. Sem deixar resquícios ou cheiros.
Apenas ouço o eco longinquo do vozerio que me acompanhava em coro.
Queriam minha cabeça.
Queriam ver-me pelas costas.
Queriam apunhalar-me.
Apenas me acompanha a vontade de tossir.
Como se todas as mágoas estivessem sendo expelidas a cada tossida.
Peço perdão.
Perdão.

terça-feira, 4 de maio de 2010

As pessoas fazem tanta falta para nós como os dedos à mão. E ao olha ao redor nos damos conta de que o mundo não é feita para nós, ainda que vivamos nele. Nós é que 'fazemos' o mundo quando idealizamos. As ideias são apenas conceitos, sugestões, imagens que desejamos serem reais ainda que estejam no mundo meramente mental. E o mundo, assim como as ideias, é a extensão desse outro mundo que vive ligado umbilicalmente conosco.

Podem dizer o que for, a verdade é uma só: feliz é quem está bem consigo mesmo. A minha felicidade não é, exatamente, a sua, porque o que me faz feliz pode não ser o que faz você feliz. Portanto, a felicidade é algo que vem do subjetivo de cada um de nós. Não há uma felicidade padrão. Há, sim, a felicidade. E ela, como conceito, é um detalhe que se amolda à pessoa, tanto quanto a calça e a camisa, ou o sapato, quando se vai à loja para comprar um desses itens. A felicidade é um item. Um item, aliás, importante e pessoal. Ela é adaptável a cada um conforme a sua necessidade. Por isso é que nem todos são felizes pelos mesmos motivos; são felizes os que estão, absolutamente, em paz e em harmonia com eles próprios.

Instituições humanas são invenções que vieram a reboque com o homem, desde o início da Criação, em priscas eras, quando só se sabia que era preciso lutar para conseguir comida e se proteger contra o predador natural. O casamento, o noivado, a coroação, a formatura, o velório, as festas de quinze anos, tudo isso veio com a civilidade. E com ela veio também a tênue ideia de que tudo é passível de ser consumido e destruido. E se criou a guerra, baseada no conceito único de que há ganância, há ambição, há inveja, há ciúme, há ódio, há razões - ao menos no conceito puramente humano - para se destruir o outro. São, como disse, instituições humanas. Se Deus tem algo a ver com isso, não posso responder. Mal posso responder pelas minha cagadas...

Pedrinhas pelo caminho indicam fragmentações de terreno. Podem ser metáforas de dificuldades a serem superadas. Ou, apenas, o fato de que alguém deixou de fazer a lição de casa e não limpou o terreno. Contudo continuarão a ser pedrinhas, erosão após erosão. Assim como os homens são pedrinhas no Universo. Apenas umas pedrinhas que pensam.

Um conceito estúpido porém verdadeiro: amanhã, hoje será ontem. Imbecil, não? Mas verdadeiro. Ou seja, certas imbecilidades, por mais idiotas que possam parecer, são verdades - ou fatos comprovadamente reais e concretizáveis. Sim, amanhã, hoje será ontem.

Cansei de filosofar. Acho que vou apenas poetizar. Ou apenas respirar. Ou apenas pensar. Ou apenas ficar de olho. Assim é o sujeito à beira da praia vendo as meninas passar, nos seus biquinis sumários e sua alegria infantil. E o olhar do sujeito é apenas contemplativo. Se há cobiça, ele a sublima sentindo o calor do sol e a certeza de que ele, assim como elas, são parte dessa paisagem monumental que nos foi dada graciosamente. E que a volúpia humana vai, dia após dia, tentando destruir. Enfim, vou parar de filosofar. E deixar de sofrer por antecipação.

Aos meus amigos, um abraço e um sorriso. Aos meus inimigos, uma pergunta: digam, afinal, onde estão. Porque o pior inimigo é o que se diz amigo. E o verdadeiro amigo é aquele que é seu inimigo e se declara como tal, sem esconder nada.


terça-feira, 27 de abril de 2010

.. E o Kaos chegou

Era uma vez um homem. Um homem num tempo onde homens eram homens, não máquinas. Naquele tempo eles sofriam as fraquezas peculiares das espécies que têm fatores influenciáveis a atingi-los. E quando eram atingidos, podiam sublimar e deixar a vida correr, ou viravam-se para o espelho da verdade e concebiam jeitos e maneiras de vingarem o ultraje sofrido.

Naqueles tempos os homens procriavam. No começo eram numerosos. As proles atingiam quantidades absurdamente grandes. O tempo, porém, começou a imprimir-lhes certas lições. E com o tempo vieram os ' novos homens' que idealizaram formas e maneiras para coibir essa fraqueza. Afinal, o mundo não era o melhor lugar para se morar. E não tinha sentido parir tantos filhos para depois lançá-los nas garras do mundo voraz.

Era o tempo que precedia o advento do mal. O mal, como conceito e como atitude. O mal diferente dos teólogos e dos crentes. Era o mal velado, subestimando as inteligências. O mal travestido de prazer e alegria fútil. O mal transformado em 'abaixo a censura, vamos desfrutar a vida!', e ninguém conseguia tolerar que tanto prazer e deslumbramento viessem a produzir o que se produziu. O que se produziu, bem, o tempo disse depois.

Por agora, fiquemos apenas nas amenidades tolas dessas criaturas cheias de orgulho e arrogância. Os olhos, que os poetas diziam ser as janelas da alma, foram vazados. A cegueira moral pairou como um manto invisível sobre todos. Ainda que não percebessem sentia-se que algo acontecera; era tão sufocante, tão asfixiante, tão denso que não era possível evitar sua presença. Mas, como sempre acontece, as decadências sucedem ao apogeu e o que as pessoas não percebem é exatamente que uma termina quando a outra começa.

Homens antigos, mentalidades enterradas em ideias absurdamente liberais, onde filhos e pais eram detratores simultâneos, onde respeito e obediência deram lugar ao conceito mágico de que 'eu não dependo de você, nem nunca vou depender'. Os teóricos e estudiosos, enfiados em suas estatísticas e na falaciosa ideia de que a tecnologia tudo poderia resolver, até os problemas mais complexos, não atentaram ao detalhe de que não só o tratamento ia de mal a pior como o habitat natural cedia vez a um galopante mundo árido e estéril. A esterilidade começava de dentro para fora. A natureza tentava e respondia; a natureza humana, essa, infelizmente, estava ou fora engolida por suas próprias doenças e vícios.

O mundo cedera vez às teorias (cada vez maiores e mais intensas) das conspirações. O sonhado mundo com ordem comum, onde todos falassem e todos fizessem era o mesmo mundo que o Big Brother de Orwel existira. Nem mesmo Huxley poderia entender que o seu 'soma' era, na verdade, o crack, a cocaína, o ectasy que se vendiam nas esquinas, nas portas das escolas, e nos vestíbulos das ante-salas. O cheiro era intenso, mas não percebiam. Mas o mundo apodrecera em vida. Como Dorian Gray aprisionado num quadro macabramente vivo, a sofrer toda a corrupção moral do seu modelo vivo.

Já não se pensava mais em filhos. O prazer conjugal também era um falácia. Casamento, uma palavra morta nos dicionários cada vez mais obsoletos. A terminologia chã era o menos audível e o mais gutural possivel. Então, o homem retrocedia na escala evolutiva e voltava à condição de besta-fera, com o falo duro apontando para a frente feito um aríete, em busca da presa, do novo prato, da vítima incapaz de saciar a sua insaciável fome. Enfim, o homem sublime, o tipo criado à imagem do Criador, deixava-se vencer pelas suas vilanias e aceitava, com declarada conformação, a ficar nos primeiros degraus da escala evolutiva. Muita cerveja, muito fumo, muito sexo, muita ociosidade, e ele morreria copulando ou apenas afogado em overdoses.

Os congressos ficaram entregues à erosão dos edifícios abandonados. Por que legislar e criar leis ou resepeitar regras num mundo onde ninguém se importava com coisa alguma? Então, o que antes fora motivo de orgulho e satisfação passava à condição de verdadeiros mausoléus sujos, decadentes, devorados por uma vegetação cada vez mais abundante e em contínuo crescimento. A natureza adquirira o gosto pela continuidade de movimentos, enquanto a espécie humana, aquela que falava, ria e fazia sátiras de suas próprias mazelas, esquecera a sua vida cultural, ignorara as tecnologias, passara de ser culto a de analfabetos confessos, e os livros, se não serviam para acender as inumeráveis fogueiras espalhadas pelos cantos da Terra, serviam de recurso para que se limpassem após defecar. Na verdade a educação e a cultura tinham cedido vez à mão boba e a merda.

Era o início do Kaos. Do mundo escuro e entrevado. O homem voltava a ser das cavernas porque embotara o espírito de fora para dentro. E nesse recuar instintivo e defensivo ele não percebeu que criara uma reação canibalística. E começou, como o câncer, a devorar o que tinha de melhor. E a cada refeição deixava um rastro de coisas mortas e inúteis.

Ele não percebera que, ao idealizar o seu retroagir, criara a fórmula automática da sua própria destruição como ser vivo.

..... Essa narrativa terá continuidade. Que os meus dedos estejam no lugar quando isso acontecer.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Repensando ideias

Se pararmos um pouco para pensar, sem o impulso ou a pressa que quase sempre atrapalham o bom raciocínio, veremos que somos, em potencial, criadores e artistas, mesmo que sem pretensão de sê-lo. Nós somos, em essência, artistas. Kafka escreveu uma linda história sobre o artista da fome. Hemingway, num pequeno livro, contou a aventura e a luta de um velho pescador e o mar. Camus levou alguns anos para escrever um pequeno livro que falava de um sujeito que era um "estrangeiro" no meio de seus pares. Todas elas frutos de momentos pensados ou de anos a alimentar uma análise simples, mas objetiva, de tudo que cerca o ser humano do nascimento à morte.
Posso dizer, sem assombro, que a minha e a sua vida são, na medida da consciência que temos dela, um roteiro a ser explorado. Horas há que paramos e concebemos, num lapso de tempo curtissimo, a sinopse de uma história, que se não anotada, se perde entre as inumeráveis ideias que temos no cotidiano, afogadas e consumidas pelas angústias e preocupações que rondam e engolem a nossa criatividade.
Eu acredito que seja um escritor. Acredito porque nunca publiquei regularmente nada. Mas as ideias vêm com a mesma fluidez e desaparecem na mesma proporção, desde que me dei conta de que tinha certa facilidade em trabalhar as palavras. Uma virtude angustiante, admito. Nem sempre o que pensamos naqueles instantes de meditação e desapego do trivial consegue sobreviver às interrupções e à realidade.
Por serem fluidicas e luminiscentes como as efemérides, as ideias precisam ser, a rigor, anotadas sempre que nos assaltam. Eu sei que teria que fazer isso, mas quase sempre elas me assaltam quando estou longe de papel e caneta. A memória guarda por algum tempo, mas a mediocridade da rotina e da mesmice faz com que elas sucumbam no limbo do esquecimento. Eventualmente podem ressuscitar. Uma hipótese provável, mas não de todo conclusiva. Fica-se na probabilidade, apenas.
Uma boa história surge de uma questão elementar bem simples: ela não é longa, não tem muitos detalhes técnicos - dai ser diferente do grande romance recheado de informações e histórias paralelas -, e ao começar já prenuncia um final muito rápido. Um bom exemplo de histórias rápidas e sem enchimento de linguiça são os contos de Hemingway. De repente um conto pode ser escrito num segundo e não ter mais que uma página e meia. Nem por isso deixará de ser um conto, uma história, um flash. Dependendo do que se pretenda falar, um flash é bem a definição do conto fulminante e curto.
Por isso é que digo que todos nós podemos ser, e implicitamente somo, artistas. À nossa maneira, sem as pretensões editoriais, sem a busca desenfreada por sucesso, sem o compromisso de chegar ao topo, à fama, até porque o papel do artista é fundamentalmente exteriorizar o que o incomoda no íntimo. Na verdade todo artista, ao criar, está vomitando algo que precisa pôr para fora. Ou se asfixia.
Perdoem-me o linguajar, mas não há modo melhor de expressar o que acontece no momento exato da criação, essa forma exclusiva que se tem para gestar alguma coisa que terá que ser expelida num tempo maior ou menor. Um filho que se traz ao mundo exterior. Um pedaço de nós que deixamos de ter, uma exclusividade que passa a ser de todos, de forma incondicional.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Erich Maria Remarque e o Gato Amarelo

Capitulo Oito.
O livro nos fala da verdadeira imagem de um mundo pintado de atos heróicos e romantismo exacerbado.
Afinal, ir à guerra era, quando muito, ação digna dos verdadeiros guerreiros do Valhala.
Nada mais estúpido e mentiroso.
E no capítulo oito nós enxergamos com bastante clareza o verdadeiro sentimento do autor diante da constatação dos fatos: a guerra é um ato imbecil orquestrada por imbecis que se escondem atrás de seus gabinetes.
Os olhos do autor percorrem os homens à sua frente, que correm feito ratos de duas pernas atrás de comida nos lixos imundos dos campos de retenção.
Ele próprio já presenciara o terror e a insanidade nas trincheiras. Já vira companheiros morrerem. E gente tão nova que não chegou a completar vinte anos, e foram ceifados pelo fogo devastador do inimigo.
Mas o que me prendeu mais a atenção foi a descrição objetiva de Remarque a descrever como esses prisioneiros perigosissimos agiam a buscar na imundicie do lixo aquilo que lhes serviria de comida. E a imaginação me faz viajar àquela região da mente onde "Eu Imagino" como seja sentir fome, sede, frio, medo e desamparo, sabendo que - talvez - nunca mais volte a rever as pessoas que mais se ama.
O coração encolhe e sangra. Um nó na garganta é só um detalhe. A fome de atenção e carinho são bem mais virulentos e cruéis do que a própria consciência de que não se comeu nada há dias.
A fome é tão instigante e presente que não dá para se recusar migalhas, que se tornam banquete, ainda que em outros tempos se tenha desperdiçado o que nesse momento presente é apenas um sonho com retoques de pesadelo.
Recordar o que foi; arrepender-se de coisas feitas que poderiam ser evitadas; ter a capacidade de rememorar um passado que, mesmo intocável, atormenta e machuca; a fome dos prisioneiros que Erich Maria Remarque descreve não é mais ou menos competente do que muitos cidadãos dos dias atuais passam à margem da grande metrópole, dos shoppings iluminados e impecavelmente limpos e cheios de encantamento, das belas e monumentais pontes multicoloridas que se tornam cartão postal, mas que escondem, à sombra de suas colunas majestosas, as formas sub-humanas que andrajosamente caminham à procura de algo para saciar a fome.
E tem o gato amarelo. Grande, bonito, de olhos verdes e focinho com manchas amarelas, o rabo felpudo, o miado como se quisesse falar algo incompreensível aos nossos ouvidos. A aproximação foi difícil, porque era arisco e tinha medo. Mas um chamamento singelo, que ele entendeu à sua maneira, fez com que se aproximasse e se permitisse ser acarinhado. Em retribuição, aconchegou-se no braço, abraçou as pernas, estendeu as patas dianteiras apoiando-se nas patas traseiras, enrodilhou a cabeça no côncavo da mão - a pedir carinho e afeto - e recebeu uma tigela de ração, que vem se estendendo por esses dias todos.
Os homens do livro e o gato amarelo têm algo em comum: a fome. A fome que faz com que se sujeitem a quase tudo. Mas a fome que vai além da mera ração que alimena o corpo é a pior de todas. Aquela que corrói o íntimo, que resseca as entranhas, que faz a vida tornar-se um imenso deserto escaldante e árido. Cada dia é uma aventura, uma epopéia, a necessidade imperiosa de resistir e continuar vivendo com dignidade.
Aqueles homens "têm rostos que nops fazem refletir: são rostos bonachões de bons camponeses, testas largas, narizes largos, lábios grossos, mãos grandes e cabelos crespos. É gente para arar a terra e ceifar e colher maçãs. Têm um ar ainda mais inofensivo que os nossos camponeses da Frígia" é como descreve E.M.Remarque a falar dos prisioneiros russos famintos.
Assim como o "Meninão", o gato amarelo, que ronda a minha casa e pede migalhas de alimento e intensos e sinceros momentos de afeto e carinho, que nunca recebeu pelo visto, assim é o ser humano: faminto de comida e de afetividde. Coisa que a guerra, com toda propriedade, destrói com competência.








quinta-feira, 8 de abril de 2010

A pensar ruidosamente

Não há outra coisa mais inevitável na vida de um ser humano que o ato de pensar. Mesmo quando dorme, o homem pensa. Os sonhos são pensamentos e emoções reprimidas, que encontram meios de se escoar. Há aqueles que dormem, mas têm medo, porque sofrem pesadelos. Ao contrário destes, há os que dormem como justos; dormem em quaisquer circunstâncias; no onibus, de pé, retorcidos como galhos depois de um temporal com vendavais inclementes; apoiando a cabeça sobre os braços sobre o tampo da mesa; sentados à cadeira, no consultório; na poltrono do dentista em plena operação de tratamento... E roncam! Roncam a plenos pulmões. Roncam e parecem estar a se estrebuchar.

Nada contra o ronco. Infelizmente é um mal que grassa firme e forte entre boa parcela da população. Se é problema dos dias de hoje, duvido. Certamente o ronco acompanha o homem há muito tempo. É que apenas agora, nos dias atuais, passou a ser visto como algo mais que pitoresco e anedótico: passou à condição de agente de um distúrbio que anuncia um problema ainda maior à frente.

Mas não é de ronco que quero falar. Mas do ato do pensamento. Se há coisa que não conseguimos evitar (mesmo dormindo, daí eu já enveredar pelos caminhos dos sonos barulhentos) é o de pensar.

Tenhamos ou não problemas; estejamos envolvidos com preocupações terrivelmente incômodas ou apenas sob o efeito extasiante de um bem-estar indivisível e inenarrável (aquelas típicas situações em que ficamos a sorrir como se fossemos aqueles tais bobos-alegres), o pensamento é uma espécie de sombra indistinguível que nos segue. A forma clássica de se dizer que temos consciência é que não podemos nos separar de nosso pensamento. Pensamos, logo existimos - assim vaticinou Descartes. E não é para menos! O pensamento move-nos para todas as possíveis direções. Nos insta às alturas do prazer como nos carrega sob o peso malévolo das negatividades. Pode nos conduzir à composição de um poema cheio de derramado amor apaixonado, como construir um plano sórdido e macabro que destruiria, de forma disciplinar, toda uma comunidade. O que produz isso de forma tão veemente? O ato de pensar.

Há pensamentos que têm a propriedade inquestionável de serem ruidosos. Ainda que ouvidos humanos não lhes possam captar, são ruidosos e ensandecidos. Têm o efeito do veneno que mata lentamente, têm a possibilidade de ensurdecer tal o volume que produzem. Lá fora, o silêncio. Contudo aqui, neste momento, partindo deste ou daquele, ou de um grupo, eles são como os fantasmas que assombravam Scrooge. Vêm e cobram; vêm e revelam; vêm e dão-nos a viva consciência do que fizemos, ou estamos a fazer ou que pretendamos fazer mais à frente.

Pensamentos de amor. Pensamentos de ódio. Pensamentos ambiciosos ou apenas tímidos e recatados. Pensamentos de riqueza e poder. Pensamentos de idealizações mirabolantes e apenas por megalomania; pensamentos brejeiros de piadas recordadas; pensamentos de ideias que não se concretizaram sob a forma de inventos geniais... Tudo, enfim, são pensamentos.

E pensar também cansa. E como! Há quem reclame que está exausto. Se lhe perguntamos por quê, dir-nos-ia sem medir palavras: "Pensei muito! Isso me exauriu". E de fato há condições orgânicas em que apenas ficar pensando produz uma exaustão mental enorme. Lembremo-nos, se isso for um motivo de exemplo justificável, quando éramos jovens e nossos hormônios ferviam com tamanha magnitude em nossas veias, que os nossos pensamentos eram capazes de proezas inconfessáveis. Às escondidas constatávamos, não de forma científica, mas empírica, quão poderosos eram aqueles pensamentos concentrados e eivados de luxúria e tensão juvenil. Uau! - dirão os mais velhos, saudosos dos "velhos tempos". Sim, uau! Que quanto uau éramos capazes de produzir. Os devaneios noturnos, os olhares cúmplices, as agitações nervosas daquela massa em formação e a evoluir de jovens à idade madura, os pensamentos eram companheiros instigadores e provocadores, sempre a trazer novas opções para nos envolver nas maiores confusões. E tudo sob a égide de que era preciso queimar tanta energia. Ora, ora. Os hormônios eram energia? A gasolina com que pretendiamos apagar os nossos incêndios orgânicos? Só me resta rir dessa patifaria. Era pura safadeza a nos revelar nuances que o tempo mostraria quais os sérios, quais os absurdamente improváveis, quais os meramente fortuitos e efêmeros.

E pensar que pensar consumia-nos. E eram, e continuam a ser, ruidosamente presentes.

Antes, quando jovens, poderíamos até imaginar que eles, os pensamentos, nos dessem um tempo. Mas, ledo engano, eles nunca se separaram de nós um segundo que fosse. Nós é que ignorávamos a sua presença; porém hoje, quando o declínio do próprio ciclo vital se faz sentir muito presente, quase perturbador, deixamo-nos conduzir pelos seus liames e trajetos. Até chegamos a nos deliciar com suas travessuras, sua lucidez, seus encantamentos, suas inesgotáveis maneiras de nos fazer recordar de tudo que nos aconteceu nos dias de ontem. Foram dias atuais, presentes, foram dias que também gozaram do privilégio de serem o futuro; mas as memórias também são ciclos, e isso nos conforta e consola. Não estamos sozinhos. São eles os parceiros, companheiros de viagem, a nos levar e a dividir conosco suas alegrias e suas virtudes intrínsecas. Já não podemos dizer que sejam tão ruidosos, embora ajam e soem alguns decibéis acima do tolerável. Contudo, nós também já começamos a demonstrar que já não temos a audição portentosa de um Clark Kent...

domingo, 28 de março de 2010

O espaço imenso do coração bom

Ele é apenas um músculo que trabalha sem cessar, e de forma incansável, para que nós - os poetas, os loucos, os generosos, os bons, os maus, todo ser que respira e aspira - possamos viver. Mas convencionou-se estabelecê-lo como o símbolo do sentimento, do amor, das coisas da alma. A cabeça é a ideia, o pensamento, a razão; ele, por sua vez, o guardião que abraça as causas perdidas e fecha os olhos para não ver as ofensas nem levá-las a sério.

Pois há quem feche os olhos e enfrente, de peito aberto, toda forma de adversidade. Mesmo as ações menos prováveis, imbuídas talvez de uma força sobrenatural que vem sabe-se lá de onde, elas apenas põem a razão para avaliar, mas é o coração quem irá decidir o que e como fazer.

Retirou da beirada de uma estrada erma um animal semimorto. Esquálido, com fraturas, os olhos baços, devorado pela sarna, o Bob estava condenado - se julgarmos pela razão fria da lógica materialista catastrofista - à morte. Quem, em sã consciência, passaria por aquela estradinha para saber que aquele monte de pelo, ossos e carnes, num processo de sofrimento e dor só cabíveis de explicação por ele mesmo (caso pudesse falar), quem, eu repito, em sã consciência passaria por aquela estradinha, tomaria suas dores, poria suas carnes desminliguidas no banco de trás, e o levaria para um hospital veterinário?

Em um mundo repleto de sons e imagens, de gente correndo e buscando espaços, onde a beleza se traduz por figuras anoréxicas a andar como se estivessem conduzidas por gonzos e cordões invisíveis, de olhares frios e distantes, como se olhassem através de nós e além de nós - numa outra dimensão dos anoréxicos felizes -; numa sociedade que vê, ouve e sabe que ainda se morre de fome por esse mundo de Deus, em que homens tomam o poder e fazem valer sua força forçando as multidões a uma vida sub-humana... Ainda há pessoas que pensam como pensava Agnes Bojaxhiu, aliás, Teresa de Calcutá, que tomava as dores dos seus semelhantes e sobre eles se debruçava. Não foi dela a frase: "O senhor não daria banho a um leproso nem por um milhão de dólares? Eu também não. Só por amor se pode dar banho a um leproso"?

Li em uma biografia curta, li na internet, e sei que ela era mulher capaz de gestos assim. Tanto que o Nobel que lhe concederam reverteu-se em recursos para a sua causa humanitária. Agnes Bojaxhiu via homens como seres viventes e criaturas de Deus. Porém, direis, o Bob é apenas um cão sarnento sem dono. Quem semelhança há entre ele e as pessoas que ela cuidava?

Direi apenas: - é criaturinha de Deus. Pois que o Bob foi cuidado, sim. Gastou-se com ele o que não se previa, mas, far-se-ia novamente tudo de novo se lhe fosse dada a chance de repetir o feito. Amputaram-lhe uma das pernas. Mas mesmo com três o jovem e irriquieto Bob hoje é um carne salvo e recuperado. Nada a ver com aquele monte de nada que a sarna devoraria até a morte. Que as fraturas provocariam infecções de dores terriveis e levariam-no, fatalmente, à morte sofrida. Não a morte do passarinho. Não a morte da sombra quando a luz, ao chegar, espanta e afugenta. Seria a morte do soldado na trincheira, no campo de batalha, exposto a toda sorte de revés, distante dos seus entes e tendo o céu como cobertor. Nada mais que isso.

Felizmente ele encontrou alguém, uma Agnes Bojaxhiu que, com um coração tão imenso, porque é um coração bom, deu-lhe a chance de sobreviver, pela graça de Deus e pela boa vontade de um coração samaritano bom.

A essa nobre alma, a essa Agnes Bojaxhiu de Ibiúna, eu reverencio e homenageio com essas palavras. Nada se pode falar tanto, em laudas e mais laudas, que um muito obrigado, mulher de coração grande não ocupe todos os espaços esvaziados pelo egoísmo humano.

Repito o que aquela Agnes Bojaxhiu disse em resposta a certa pergunta feita.: - "O que eu faço, é uma gota no meio de um oceano. Mas sem ela, o oceano será menor."


quinta-feira, 11 de março de 2010

A ficção mexendo com a vida real

Leio na internet que o Ministério Público entra com ação para coibir o comportamento da personagem Klara Castanho, na novela "Viver a Vida", da Globo, sob a alegação de que as maldades perpetradas pela personagem podem atuar sobre a atriz-mirim e provocar nela danos psicológicos graves.

A questão do Ministério Público se manifestar talvez se prenda ao fato bastante comum nos dias de hoje, na televisão. Tudo é possível ser visto. Parece existir um ar altamente permissivo que afugenta o bom senso e a ética nas peças ficcionais, porque de alguma maneira a busca (e a consequente permanência do programa no ar) está diretamente ligado aos índices de audiência. E audiência significa faturamento. Significa dinheiro em caixa. Significa, em outras palavras, rentabilidade.

A garota é muito esperta, ativa, inteligente, e isso desde os tempos em que era garotinha cheia de ideias e solenes assertivas em comerciais da tv. Dai saltar para a Globo fez com que se tornasse a filha da personagem Dora, da Giovana Antonelli, e saisse daquele estado puro de criança perspicaz para o de uma criança sombria e cheia de articulações maldosas.

Não sei exatamente o que o autor da novela pretendia fazer. Estaria ele querendo discutir as potencialidades criminosas da infância? Ou seria supor que a infância guarda, no seu mundo mágico e desconhecido, uma dose inexplicável de crueldade? Seriam as crianças tão cruéis assim?

De repente a menina passa da candura para a premeditação. Engendra e articula e fica à espreita da sua presa. No caso, Tais Araujo, ou mais exatamente, Helena, sua vítima potencial, porque foi
flagrada aos beijos com o atlético e relutante Bruno, ou Thiago Lacerda. O que, na verdade, o autor pretendia fazer com a garotinha? Torná-la uma serial killer? Uma chantagista inveterada? Uma torturadora de adultos pecadores?

Da ficção o assunto saltou para fora da telinha e entrou no âmbito real da vida cotidiana, dos desníveis, das injustiças, dos pecados sublimados pelas trevas da ignorância geral, e sentindo que o texto pudesse prejudicá-la direta ou indiretamente a niveis psicológicos, julgou ele que era hora de dar um "pare geral" e rever conceitos.

Não há uma comissão legitimamente ética para analisar e observar com acuidade e retidão o que deslancha à vela solta na nossa televisão. Quanto mais bizarrice, melhor. Mais audiência, mais dinheiro em caixa, mais gente sentindo-se a última bolacha do pacote. De repente perdeu-se o senso de ridículo. Nem tudo se pode ou se deve discutir na televisão. É pura demagogia dizer que não há mais espaço para censura. Ora, por falta de controle e por excesso de libertinagem que a nossa vida real, daqui de fora, está a draga em que se encontra! Ninguém respeita ninguém: nem pessoas, nem leis, nem regras.

Não digo que tenhamos que ser puritanos, mas uma boa dose de bom senso e clarividência ajudaria a evitar essa absoluta permissividade que rola pela tv, como se nós é que fôssemos personagens da ficção do mundo exterior. Por acreditar que a censura conteria o direito à liberdade de expressão é que se comete toda forma de grosseria e ofensa a valores e tradições.

A ficção, verdadeiramente, mexeu com a vida real das pessoas, e de tal maneira, que não é nada improvável elas se perceberem agindo como se fossem personagens. E enquanto a audiência em alta, mas com baixa categoria, for o sustentáculo desse sistema corrompido pelo sucesso -a-qualquer-custo, grandes olas serão dados à "liberdade de expressão", ainda que essa liberdade, na verdade, não passe da mais deslavada pouca vergonha jamais vista.

E errado são os puritanos, os conservadores, os sensatos. Até porque eles têm o perfume inequívoco da ficção dos livros...