quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

As ruas são o reflexo da nossa loucura

O que causa mais impressão é que aqueles que deveriam dar o exemplo é que são os primeiros a serem apontados pela má conduta. Eu me refiro aos policiais e os que têm a função de fiscalizar. O trânsito, mormente caótica, fica ainda mais quando nos deparamos com atitudes destrambelhadas de viaturas utilizadas pelo policiamento e pelos servidores da Cia de Tráfego, a agirem como se tudo pudessem fazer, não nos cabendo sequer o direito de resmungar. Ajuda muito a piorar a situação algumas empresas que insistem em utilizar a calçada – que teoricamente é, ou seria, do pedestre – para esticar os seus serviços de valets , restando-nos a grande possibilidade de, andando junto ao meio-fio, sermos atropelados pelos tresloucados motoristas desta enorme Panela de Pressão.

O olhar crítico acaba sendo uma coisa óbvia. Ignorar é negar a sua cidadania e seus direitos. Por outro lado saber os direitos e as obrigações não tem resolvido muito a nossa vida. Nós sabemos, mas e eles? Andando a milhão como se não tivessem freios e as ruas fossem pistas de provas, os motoristas abusam da nossa paciência e da nossa sanidade. Eles acham que temos que encarar tudo da melhor forma possível. Para eles, e para os que teriam que observar e aplicar multas e severas penalidades aos abusados, é como se nada esteja acontecendo. A cada dia a cidade se torna mais selvagem, mais desumana, mais distante do equilíbrio e da racionalidade. Guardando as devidas proporções, até porque ainda não chegamos lá, a cidade lembra às vezes aqueles cenários fantásticos da ficção científica, onde o que resta de humanidade tem que conviver com o embrutecimento do resto da população, que pirou.

Há um filme bastante interessante, que parece não ter tido uma trajetória de sucesso, mas que tem um conteúdo crítico bastante inteligente, chamado EPIDEMIA, que coloca de forma contundente essa ‘transformação’ por que passa a população de uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos.

Ampliemos essa pequena cidade provinciana, e coloquemos isso a acontecer numa megalópole como São Paulo, e certamente, num tempo médio razoável, veríamos certas ‘coisas’ acontecerem de forma tão surpreendente que aos poucos a mídia escrita e eletrônica perceberiam que ‘algo, de fato, está acontecendo, e não parece ser nada bom’. Teriam que noticiar. Os jornais, os programas matutinos e vespertinos abririam espaço para comentários e observações, até que a própria mídia fosse inapelavelmente atacada e a repercussão cessaria, até que a notícia (e a conseqüente realidade) morresse ou fosse ignorada porque todos, salvo algumas raríssimas exceções, conseguiriam perceber que o resto da humanidade tinha começado a ser destruída.

Por que insisto em falar a respeito de realidade e ficção? Porque ambas se mesclam. O que era outro dia ficção é hoje a mais cândida realidade. E mesmo agora, enquanto redijo esse pedaço de texto, e reflito no que escrevo, muita coisa que era um sonho, uma maluquice de uma mente cheia de idéias, tornou-se factível e faz parte do cotidiano dos cidadãos. Quando naquele dia o homem conseguir teletransportar-se de um ponto a outro, como era feito em Star Trek, a série, então, com certeza, teremos chegado ao ponto culminante de que a maluquice só é maluquice até que se torne plausível e, quem sabe, popular até demais. Já não será privilégio nem de Kirk e Spock. Nem precisaremos, talvez, ter orelhas pontudas ou inteligências exacerbadas de verdadeiros gênios, para gozar as benesses desses avanços. E ainda assim, naquele momento histórico único, alguém achará que o tempo de teletransporte está muito lento!

Mas eu dizia que o que me causa impressão são os exemplos que não vêm daqueles que exigem de nós essa conduta impoluta e absurdamente correta. Reparando nas coisas que acontecem pelas ruas da cidade dá para entender que alguma enzima esteja atuando nos cérebros e provocando essas alterações tanto de humor como de comportamento. O sujeito fica selvagem, terrivelmente violento e perde a compostura na linguagem e nos gestos. Tudo porque não quer ceder nada, mas quer que cedam a ele. Porque alguém disse que o Eu é muito importante, e tem que ser satisfeito a todo custo, as pessoas deixaram de lado a sua boa educação, o gesto delicado e consciente, a gentileza para assumirem o lado negro e sombrio de suas personalidades. Um olhar apenas basta para que interpretem como uma provocação. E se além do olhar o outro resolver falar alguma coisa, essa alguma coisa virá como ofensa explícita e a batalha campal entre ambos estará proclamada para já.

Ontem assisti o filme Tropa de Elite 2, e confesso que nunca me senti tão bem vendo o Coronel Roberto Nascimento socar com vontade o Secretário da Segurança Pública do Rio de Janeiro. Tudo porque ele sabia que esses tais políticos estavam por trás do atentado que sofrera sua família, e que vitimara seu filho Rafael.

A realidade é diferente? Aquilo era apenas ficção? Sim, a apresentação inicial do filme fala-nos isso. Mas eu recomendaria que vissem aquilo como a mais pura e honesta realidade. É isso mesmo que acontece neste país. Com nomes trocados, sim, mas são as mesmas personagens, o mesmo país, a mesma cidade, os mesmo vícios, os mesmos bandidos, a mesma violência, a mesma impunidade, a mesma cegueira que afronta o bom senso e nos insta a pensar até quando tudo isso (ou aquilo) continuará a acontecer.

Um dos melhores filmes brasileiros que vi. Há violência, a menção ao tráfico, à corrupção, sim, há. Mas é essa a nossa cruel realidade. É isso que acontece todos os dias e que migra para os jornais, as rádios e as televisões. Quem assistir não se assuste, nem se escandalize. Seria hipocrisia fingir rubores e alguma indignação. Indignados deveríamos ficar todas as vezes que os políticos, corporativamente, usando de seus atributos, vantagens e privilégios, lesam e enganam o povo e se locupletam de todos os modos e maneiras, seja qual for a alegação que usem para justificar suas tramóias.

A loucura das ruas é apenas o reflexo da deseducação por que vem passando a sociedade brasileira, seja a nível de escolas ruins e cursos capengas, como da perda irremediável da educação do lar, porque nem lares normais temos tido. Depois da ascensão da mancebia como alternativa opcional (e facultativa) para ver se a relação a dois vai dar certo, o casamento tradicional vira, lenta mas inexoravelmente, ato obsoleto a tornar-se tacanho no médio e longo prazos.

Só esqueceram de avisar que, nesse teste de união a dois com possibilidades de cancelamento e novos relacionamentos aleatórios, sobram os filhos – frutos infelizes dessas uniões imprestáveis.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

As folhas que caem das árvores

Acabo de deixar um recado na caixa de mensagem de uma pessoa, e acho que o efeito dessa mensagem não será de todo bem compreendido. Mas são os efeitos das relações mal delineadas que temos na vida. Muitas vezes achamos que temos a situação sob controle, e descobrimos que elas é que nos tinham nas mãos. O fato é que as relações acontecem, e muitas são absolutamente virtuais, longe de se saber quais as reações dos olhos, da boca, das mãos, nem se a sudorese será espontânea ou haverá uma. O que mais intriga é que o mundo virtual produz efeitos reais. A ação que atua sobre nosso comportamento é tão ou mais intenso do que se fosse um contato físico de carinho ou de violência. As marcas, de alguma forma, aparecem. A virtualidade não poupa os que se deixam levar por essas trilhas. Mas isso devemos à nossa condição de seres pensantes com direito a sentimentos e emoções.

As salas ficam apinhadas. Os e-mails triplicam à quinta potência, nomes e rostos vão se avolumando nos monitores, milhares de frases e pensamentos são gravados sobre a virtualidade da tela, que conduz tudo com a rapidez do pensamento. No momento atual eu redijo, e momentos posteriores já estão do outro lado do planeta, como um passe de mágica, como se isso ainda fosse a antiga ficção de ver Flash Gordon ou Jornada nas Estrelas e ficar boquiaberto, dando lastro à imaginação.

Eu dizia, porém, que deixei uma mensagem numa caixa de entradas de uma pessoa. Ela a lerá e considerará muita coisa. Poderá irar-se, irritar-se, acabrunhar-se, ignorar, deletar ou simplesmente interpretar como algo factível, mas absolutamente desnecessário. Não para mim. Para ela. Certas suavidades nas relações sociais são fundamentais, mas as pessoas têm abolido o seu uso por julgarem que irão ter mau juízo delas. Uma pessoa educada pode ser um fracote. Uma pessoa voluntariosa, atrevida, é considerada uma liderança, uma força latente. Porém, a boa educação manda que façamos ao outro o que queremos que façam conosco. O motivo da minha irritação - que chegou a ser um desabafo - então tem sentido e se justifica.

Não poria aqui os motivos, nem o conteúdo. Não considero que seja importante. O que conta mesmo é o fato da saida à francesa e como aconteceu. Não tão à francesa, mas bastante impertinente, para não dizer vulgar. Tanta descontração chega às raias do mau gosto e do excesso de confiança que resvala na impertinência.

Se as folhas fossem ficar preocupadas com a nudez das árvores, folha alguma cairia. Mas não somos folhas, e já não somos trepadores de árvores como nossos ancestrais primevos. Certos protocolos se fazem presentes, mesmo quando o interlocutor nos ofende com delicadeza refinada.

Não fui ofendido. A ofensa acontece quando recebemos um gesto que desaprovamos, e não temos como tomar satisfação ou tentar saber se foi ou não deliberado. Um pisão no pé pode gerar um pedido de desculpas. Nos dias presentes as pessoas apenas olham para o chão e fingem que pisaram no chão, não no seu pé. Ou aquele cotovelo bem torneado a lhe dar cutucões na cabeça, no rosto, na ponta do nariz. O gesto se repete. Dessa vez sem a preocupação de olhar a direção do cotovelo. O gesto mais inteligente é recolhê-lo, fingindo não ter percebido nada.

Assim é como eu me sinto quando me deixam a falar sozinho, ou quando saem e sequer dignam-se a lhe dar um "até logo", "a gente se vê", "até amanhã". Parece mesmo que as pessoas não se conhecem. Elas se frequentam, falam-se por razões imperiosas ou por determinação profissional, mas não se dão ao trabalho de serem gentis, mesmo porque elas perderam o gosto (e o prazer eu também diria) pelos bons modos. Hoje vale tudo, até ser educado quando é obrigatório.

Nos amplos gramados arborizados, quando a época chega e o vento tem a força de dedos ágeis, as folhas são arrancadas dos ramos com a facilidade de um artista a manusear seu pincel ou seu bisturi. O chão fica coberto de folhas, que irão apodrecer, secar e incorporar-se ao chão e à grama virando uma coisa só. E é mais ou menos assim que as pessoas começam a se sentir quando a ação social entre elas produz esses intervalos estranhos, verdadeiros buracos invisíveis a incomodar a relação.

As folhas são folhas, não pensam. Seu destino final será o chão e diluirem-se nele. Nós não somos folhas. Ainda somos gente. Mas algumas pessoas vão perdendo o gosto requintado pelo gesto e pela palavra que têm o poder de trazer aos lábios um sorriso, um brilho diferente nos olhos e aquele desejo incontrolável de dizer um "muito obrigado" que sai lá de dentro do peito.