terça-feira, 5 de outubro de 2010

O Balanço

Fazer balanço não significa amarrar uma corda num grosso galho, uma tábua sem arestas como assento, e transformar uma ideia numa brincadeira. Fazer balanço quer dizer - vou parar para repensar tudo que já fiz.

Aliás isso é o que o ser humano costuma às vezes fazer. Nem sempre. Mais erra do que acerta. Mas ele tem consciência. O que mostra quão próximo está do animal, e quão distante está de ser igual a ele. Exceto pela dor, alegria, fome, frio, percepção do perigo, necessidade de estar junto de seus iguais, homem e bichos não têm muita coisa em comum.

Contudo, o eremita prefere a solidão à multidão. O animal ao lado sentado ou deitado, respeitando o silêncio do homem. Se este se ergue, ele ergue a cabeça e fica de prontidão. Se o homem fala com ele, ele retruca ao seu modo. De modo geral conversam. Cada um na sua lingua. E magicamente se entendem. O divórcio entre homem e bicho é muito raro. Diria quase impossível. As separações dolorosas, entretanto, são comuns. A morte costuma cortar esses elos de amizade. De fraternidade.

Então, por quê fazer balanço? Acho que é a idade. Ou aquele momento da vida que a gente para e fica como que numa encruzilhada. Tem gente perto. Tem trabalho. Tem familia. Tem amigos. O céu, o chão, tudo parece muito igual, como sempre foi. Mas não é bem isso que a gente entende. O balanço é uma forma de por as coisas nos seus lugares. Muita coisa fica desarrumada. Como numa casa onde muitos moram e poucos se preocupam em manter a ordem. A vida urbana primeiro entorpece, depois vai roendo. Quando nos damos conta já estamos pela metade. A vida passou, as coisas foram acontecendo, certas situações não podem mais ser mudadas. Se tanto, podem ser compreendidas. Ou esquecidas. A memória valha algumas vezes. Rostos somem. Nomes. Lugares. Cheiros. Aspectos de perigo ou de prazer incontido. Aquele momento tão esperado. O Papai Noel que não veio e frustrou. O presente que não foi bem o que eu queria. A reprovação. O diploma duramente conquistado. O emprego que decepcionou. A carreira que ficou pelo caminho. Amigos que se foram sem dizer adeus. A primeira namorada que nunca mais viu. Aquelas velhas casas que hoje dão lugar a prédios assépticos, de concreto, cheios de vidros e absolutamente impessoais. Não vemos mais árvores. Nem jardins. Cachorros nas ruas são muitos, mas não aquele pequeno fox paulistinha, nem o pastor alemão do vizinho. O delegado empertigado, andar duro feito um pau rolando pela calçada, mas simpático o bastante para cumprimentar uma criança.

Fazer balanço. Mas a gente fica pensando todo o tempo. Vamos ao passado, ficamos lá um bom tempo. Voltamos ao presente, o barulho atormenta e cansa. O cheiro de fumaça sufoca. A poluição é um fato que nunca se viu antes. Ai então tentamos ir para o futuro. Mas ele é tão intangível, improvável, construções feitas de fumaça, lugares sem definições de cores e traços. O céu não tem uma cor definida. As pessoas são dificeis de serem imaginadas mais velhas. A única coisa a acenar por ali é a figura esquiva da morte. Mas ela é sutil, bastante educada para não se mostrar de corpo inteiro. A percepção momentânea faz com que a chamemos para tomar assento na conversa, mas logo a dispensamos. Ela não fala. Ela é paciente, espera. O futuro é chato. Criança não gosta de pensar no futuro. Ela vive o momento atual, já, este instante. Não guarda reservas para gastar amanhã. Amanhã ela transforma seu entusiasmo inocente em novas energias para novos folguedos e novas travessuras. Por isso é que criança gosta de balanço, não de fazer balanço.

Chega, porém, o momeno intrinseco da realidade. Abre-se os olhos pela manhã. Olhos empapuçados, enevoados, a cabeça parecendo descolada do pescoço. A sensação de que o sonho há pouco vivenciado ainda está ao lado tentando manter sua presença efêmera e esfumaçada. O jato de água do banho faz com que toda a névoa da noite se dissipe e o dia, mesmo nublado e sem os raios acolhedores do sol a nos aquecer o rosto, indica que é mais um dia. Um novo dia.

Ele também fará parte da história desse balanço. E adultos que somos não iremos desfrutar da alegria mágica da criança que ainda somos, nem nos atreveremos a nos sentar num assento solitário em algum parque público, e dar bons impulsos e nos entregar à exuberância de sentir o rosto fustigado pelo vento a lambê-lo e a beijá-lo, os cabelos esvoaçando, querendo chegar às alturas do infinito. O balanço que nos alegraria tanto cede vez ao outro, aquele que quase sempre trará velhas feridas e cicatrizes à luz do dia, ou da noite, e em vez de ficarmos felizes com os pensamentos, talvez choremos de saudades, ou nos irritemos com certas coisas que gostariamos de não ter feito.

O balanço que nos balançava será outro - será agora aquele nos balançará perturbadoramente por dentro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário