terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Há pouco o Natal acabou. Tão rápido e tão carente de entusiamo. Um dia especial que virou rotina, onde se come aquelas iguarias que só são feitas nessa época; que se bebe aquelas bebidas próprias para a ocasião; que se vê aqueles parentes que só se encontram eventualmente, e essa eventualidade do Natal é uma delas.

O Natal das luzinhas coloridas e das árvores decoradas na sua mais casta simplicidade: onde os galhos eram pontilhados de pedacos pequenos de algodão, e as bolas eram de todos os tamanhos e cores. As luzinhas com pisca-pisca a brilhar no escuro da sala, colocada no canto, projetava suas sombras multicores para todos os lados.

Reunida a familia, composta de mãe e dois filhos pequenos, porque o pai trabalhava à noite - logo era uma ausência prevista -, ficavam ali a aguardar um visitante ilustre que nunca chegou. Mais um pouco, o sono chegava. Iam todos para a cama concluir a festa do Natal no silêncio de sua solidão. Nem vizinhos, nem parentes, nem ninguém. Apenas eles e nada mais.

A virada do ano era uma outra festa cheia de absolutamente nenhuma alegria, exceto a chuva de papéis prateados lançados do alto no Viaduto do Chá, e a Corrida de São Silvestre que tinha o charme de ser à noite - e não durante o dia, como determinou as novas formas de conduta da mídia televisiva. Era à noite e tinha o glamour de uma festa de final de ano. As pessoas iam às ruas e torciam. Os ganhadores eram quase sempre os velhos conhecidos de outras competições. Criava-se, pois, um laço, um vínculo de afetividade. Era como se eles fossem brasileiros - ainda que viessem ao Brasil uma vez ao ano só para competir no dia 31 de dezembro.

Há pouco foi Natal; logo será reveillon. As pessoas brindaram o novo ano como se fosse ser realmente um novo ano. Apenas um lapso, uma ilusão, uma busca consciente da inconsciência dos que creem sem questionar. Nada muda. Exceto os dias no calendário e as formas equivocadas e maldosas dos escândalos e das más notícias. Continua sendo o ano com um novo rosto. O conteúdo, infelizmente, este é transferido deste para aquele. O velho ano deixa a herança maldita dos problemas que apenas mudam de gaveta, que ficam para o próximo exercício, que podem ser postergadas. Alguém resolverá, se tanto, ou apenas tentará explicar porque não o fez. Logo será novamente Natal e Ano Novo, e novas promessas e mentiras serão aspergidas como água benta sobre as cabeças de cenhos baixados, olhos postos no chão, um peso enorme sobre os ombros e a certeza nua e crua de que tudo não passou de uma fábula, um sonho que mudou de lado, e que continua a ser etéreo e imaterial como os sonhos daquelas crianças que, a olhar a árvore de Natal colocada no canto da sala escura, imaginavam que poderia existir um velhinho de roupas vermelhas e barbas brancas a trazer presentinhos e surprêsas para todas as pessoas.

O Natal nem é isso. É algo bem mais simples e muito mais importante que só receber presentes e um afano na cabeça. Ninguém perguntará se você foi bom ou mau, se fez a lição, se não roubou, se não mentiu, se respeitou este ou aquele. Ninguém perguntará de sua conduta, nem do que você pensou. O bom velhinho será apenas uma figura de shopping e de cartão postal. No Natal as pessoas encherão suas maravilhosas caras com toda sorte de bebida e se empanturrarão de comida até quase explodir. Deitar-se-ão na cama e literalmente desmaiarão. Sem sonhos, sem pensamentos, apenas o ronco agudo e sonoro dos estômagos forrados e dos cérebros imersos em muitos copos de bebidas. O Natal do Menino Jesus e da manjedoura não mais que uma esquisitice que, casualmente, faz ainda parte do cenário festivo do comércio ávido por vendas e receitas.

Novo Ano, novos sonhos, novas esperanças, novas maneiras de driblar a dureza da vida e a desfaçatez dos poderosos. Será o dia das muitas gotas caindo sobre a eterna chapa quente das vaidades. A criança de ontem já não existe mais, ainda que sufocada dentro de corpos tão elásticos e elegantes quanto egoistas e vaidosos.

A continuar do jeito que vai, logo mais o Natal será apenas uma boa desculpa para que as pessoas tentem se lembrar, ainda que sem sucesso, qual foi, um dia, o motivo principal dessa festividade. Mas nunca deixarão de saber, com resposta pronta para ser proferida, que nesses dias a comida será farta e a bebida abundante. E se embriagarão dessa alegria alcóolica e efêmera, como alcóolica e efêmera tem sido todos os demais dias dessas vidas tristes e sem muita esperança.

Feliz Mesma Coisa Todo Ano!

sábado, 31 de outubro de 2009

Entre mundos

Eu sou parte deste mundo - o único que temos e que é possível viver. E por mais desesperador que seja iver nele, o nosso desespero será, sempre, fruto da nossa capacidade de enxergá-lo, de senti-lo, de participarmos dele; será a nossa visão mais (ou menos) pessmista, mais (ou menos) corajosa e otimista que dará as cores e os sabores do nosso habitat único. É este mundo, e não outros que circulam na imensidão do espaço e da nossa completa ignorância, que nos acolhe. Ainda que mostrem e gritem e descrevam, com cálculos primorosos, o que seria possível existir além da nossa fronteira intelectual - sobre o tamanha insuportavelmente assustador d universo -, será sempre a nossa cultura religiosa, aliada à nossa ignorância, mais a acomodação simplista de enxergar o céu e o inferno como os únicos finais possíveis, que dará os contornos do aceitável daquilo que é, na visão de certos dogmas, ou, tudo não passaria de uma inquestionável loucura.

Há dois mundos possíveis de compreender porquanto sejam tangíveis, compreensíveis e um deles chamamos de estágio. O primeiro é este mundo - que nos recebe ao nascer, nos acolhe, no qual evoluimos como seres humanos ou apenas nos desatinos tipico dos seres brutais; que nos alimenta e que nos cobre com sua espessa camada de terra quando o nosso sistema vital entra em falência. O outro é exatamente a Morte, dai chamar este mundo de estágio, para minimizar a linguagem daqeles que têm ouvidos mais sensíveis ou para apaziguar a inteligência e o caráter dos que querem chegar até Deus, mas não querem morrer. É o grande anacronismo, um contra-senso, mas também um fato real: viver a vida dos cinco sentidos, a plenitude dos prazeres e das riquezas emuladoras desses quase infindáveis prazeres (e também de incontáveis vícios) e temer - oh, sim, temer - aquilo que virá depois que houver a falência vital e for necessário, sem qualquer escolha ou apelação, abandonar tudo que se juntou de bens, de virtudes, de vícios, e encarar o outro lado tão nu, tão despojado, tão sozinho como quando saiu do ventre corporal de uma mulher, que se convencionou chamar de mãe.

Perscrutar sobre se há ou não vida em outros mundos é um exercício inconcluso, para muitos contraproducente, que serve para alimentar a imaginação dos escritores, dos cientistas e dos moralistas, mas apenas é um exercício sem um final oficialmente aceito.

É presunção imaginar o nosso pequeno grão de areia cósmica coo único grão com vida inteligente? Eu digo que é, contudo não vou resolver as intermináveis divergências doutrinárias das igrejas, não poria fim à fome nem à injustiça, não extirparia o espírito totalitário e ditatorial do ser humano, nem acabaria com as dicotomias conflituosas de religiões, nem com a ganância, a prepotência do racismo, a insanidade do crime contra a vida alheia, nem com o crime contra a nossa própria vida se entendermos que os vícios, o suicídio lento dos maus procedimentos diários, os apetites desenfreados dos modismo contemporâneos, tudo isso é uma sutil e devastadora forma de auto-aniquilamento.

Não acabaria e, diante do argumento hipócrita e cínico dos insubmissos, me revoltaria quando dissessem que "se vamos morrer mesmo, temos mais é que aproveitar a vida", que só confirmaria a avançada evolução da devassidão que domina este mundo, mesmo que todos vejam, mas aceitem; todos condenem, mas condescendam; todos reprovem, mas fechem os olhos e virem os rostos para o outro lado. Até porque é mais fácil fingir que não se vê, que não se ouve, que não se saiba. Legítimo porque é contemplado com o mérito da dúvida; é lícito porque estar absorto e distraído concede-lhe o direito ao perdão, mas absolutamente imoral sob o ponto de vista de consciência.

Certa ocasião, há algum tempo, e não saberia precisar a data, en passant pelo canal Multishow, me deparei com um bate-papo entre apresentadoras, e na ocasião elas discutiam a conduta de certos políticos e sua forma elástica de encarar a moralidade institucional que justificasse as suas próprias condutas no poder público. A certo momento uma das apresentadoras, a atriz Betty Lago saiu-se com uma pérola de observação que, àqueles tais ouvidos sensíveis, soaria como uma frase de mau gosto, mas que refletia o mais puro e sincero desabafo, quando disse que eles poderiam fazer o que bem quisessem, mas que "um dia, com certeza, acabariam morrendo de câncer", o que provocou risos de todas as presentes, mas que me fez pensar seriamente no seu conteúdo.

Não o câncer doença, que todos temem mas que é um fato inequívoco. Mas o câncer doença acaba sendo uma metáfora real e tangível quando entendermos que, se a justiça humana não consegue alcançá-los para puni-los pelos seus excessos e desvirtuamentos, a doença, como um aliado silencioso dentro do próprio personagem, serviria de fiel da balança para pô-los no lugar que mereceriam estar.

Inevitavelmente a doença é um efeito própria dos desvios e excessos, e ele habita nossas entranhas e se manifesta quando o terreno se torna propício. A verdade é que também há um outro mundo bastante subjetivo, além deste - material -, da Morte - fase terminal -, mas também aquele que acompanha entre um e outro: o mundo da consciência. Onde residem os planos, as idéias, onde se faz o balanço do certo e do errado, do crime e do castigo, aquele mundo onde nem o dinheiro, nem as bebedeiras, nem as drogas eliminarão a "insustentával leveza do ser".

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Seguir em frente... até quando?

Porque a vida do quotidiano absorve-nos completamente, deixamos, muitas vezes, ou quase sempre, de pensar essencialidades que dariam um novo rumo às nossas vidas. A grande desculpa, a palavra-chave, a senha de acesso a toda essa mistureba que é a vida moderna se resume em estou sem tempo, como se isso fosse a desculpa padrão que nos permite ter uma boa noite de sono, a consciência limpa, poder olhar para aqueles que amamos sem sentimentos de culpa ou remorsos inquietantes. A mínima noção de religiosidade também é uma boa solução para aqueles que vivem se desculpando de tudo que fazem, como se a desculpa fosse uma fórmula mágica que os isentasse de toda e qualquer responsabilidade.
Esse negócio de estou sem tempo já produziu inúmeros momentos reflexivos em homens e mulheres bem sucedidos que, a despeito de serem pessoas de relativo sucesso em suas profissões e carreiras, viram esboroar a sua vida pessoal simplesmente porque no afã de chegarem lá, esqueceram-se de detalhes importantes e simples, e o mais cruel dessa tomada de consciência é que retroagir é uma ação proibida, não por falta de vontade ou de arrependimento, mas porque a vida, por si só, não dá marcha à ré, não anda para trás; a essência da vida é ato continuo, incessante, irrevogável. Daí porque não poucos são tremendo sucesso nas suas atividades e paradoxalmente vivem a recolher os cacos de suas tragédias intimas.
Chegar lá, ir em frente, são formas baratas de expressar a evidente questão que nos foi colocada quando chegamos a este mundo. A inclusão de pequenos detalhes de somenos importância como lidar com amigos distantes que há não vemos, ficar noites insones para implementar o projeto de nossas vidas – mas que depende do aval deste ou daquele – e a incontrolável insaciedade por devorar tudo que vem às mãos, sejam com os olhos, com a boca, com as mãos – a eterna questão do ter, do possuir – evidencia que a intranqüilidade do ser humano, e o conseqüente sofrimento moral e físico por que passa tanta gente, é que a idéia de posse tira a paz e a tranqüilidade de quem quer que seja.
Cercamo-nos de conceitos que nos venderam. Herdamos idéias que não damos a devida valorização porque não pesamos as suas conseqüências. Simplesmente adotamos certos dogmas, conceitos, filosofias, ideologias porque fazem parte da cultura geral deste ou daquele povo. E quando o tal estalo acontece, num certo instante de nossas vidas, a sensação que saboreamos nem sempre é doce, nem sempre é agradável. Muitas e muitas vezes o gosto é amargo e a impressão que se gruda ao nosso espírito é de que falhamos por inoperante preguiça de decidir por um não convicto, e porque, por covardia contumaz, adotamos o sim por causa da maioria da qual sempre fizemos parte.
Por que não nos escandalizamos por conta dos escândalos que ofendem a nossa inteligência e a nossa sensibilidade? Por que é bem mais fácil concordar e aceder à pressão corporativa de certas minorias que têm o poder, alegando que não temos instrumentos legais para combater a ignomínia? Por que concordamos em avalizar a conduta mesquinha dos maus que dizem governar, aceitando sua improbidade como regra, porque julgamos que, antes mesmo de começar a luta, vemos a derrota estampada nos jornais e os dedos sendo apontados contra nós a dizer-nos: Quem vocês pensam que são? Não sabem como quem estão falando?
Acredito, ou tenho pensando muito a respeito, que o sofrimento humano prende-se umbilicalmente às incontáveis inutilidades que juntamos no curso de uma existência.
Aparentemente podem dizer que livros, CDs, DVDs, dinheiro, propriedades, títulos nobiliárquicos, cargos públicos, profissões sejam inutilidades. De certo muitas horas de renuncia e abnegados esforços ao longo da vida foram para construir um bom nome e uma honra impoluta. De certo que a dedicação nas pesquisas dos cientistas, a dedicação altruística de médicos e enfermeiros foram únicas com o objetivo de salvar vidas e minimizar padecimentos físicos. Não pretendo dizer que todo e qualquer esforço foi inútil; mas deixam de ser importantes porque temos a finitude do corpo, e juntar honrarias ligadas a um nome tradicional ou porque se fez algo em favor de muitos não significa que mereçamos privilégios aos olhos dos homens, até porque isso não é mérito humano – é consciência moral e gesto amoroso do homem pelo que entende de solidariedade e amor ao ser humano.
Mas tudo isso acaba ficando para trás. As honrarias, o poder, as riquezas, o bom nome, as glórias, os elogios, as festas, as recepções, o brilho hipnótico de sentir-se finalmente nas alturas da pirâmide social, tudo cessa, tudo tem um termo de interrupção no instante seguinte em que a ciência declara que este corpo teve morte cerebral.
O corpo, a máquina, o receptáculo, a materialidade cessou. Não há que se reivindicar que tenha que levar isto ou aquilo. Viemos sem, voltamos sem. Às vezes até voltaremos com mais problemas, teremos amealhado maior número de irresponsabilidades, ainda que entronizados em cargos renomados e granjeando uma notoriedade duvidosa. Além dessa justiça que conhecemos cambiante e claudicante em muitas ocasiões, existirá uma outra que, sem criar cláusulas especiais nem leis imediatistas que tentem remendar o buraco dessa colcha mal alinhavada que é a “boa intenção humana”, essa justiça que está além dará a todos, sem exceção, a chance de consertar com dignidade tudo aquilo que desmancharam à época em que poderiam ter agido diferentemente, e com mais propriedade.
Talvez ai se explique o sentido metafísico do sofrimento presente de pessoas aparentemente despojadas de culpas. Talvez se explique porque muitos padecem, sem que tenham produzido nesta vida um só gesto capaz de justificar tanta dor. Mas terão os nossos olhos a visão inteira e completa do todo? Permitiríamos que nossas bocas blasfemassem contra a divina decisão de aplicar a justiça, alegando parcialidade e ignorância? Mais que blasfemar contra o que é perfeito é deixar de entender que o perfeito transcende a lógica humana; e que é graças a essa transcendência podemos repousar nossas esperanças em dias melhores.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O titulo que atrapalha

Leio na Internet que os argentinos estão questionando a divindade do seu “deus” Maradona, e isso, de alguma maneira que leva a refletir sobre o que se passa na cabeça dos homens nos dias de hoje.
Falamos de um homem que, tempos atrás, foi divinizado pelo fanatismo futebolístico argentino. Aquele que se dizia maior e melhor que todos, inclusive do Atleta do Século – Pelé – hoje, na condição de técnico da seleção nacional, se vê em papos de aranha perdendo de todo mundo e correndo o risco, o que é pior, de ficar fora da Copa de 2010.
Claro, estamos falando de futebol, de um ex-jogador, de um sujeito falastrão que depois que abandonou o ofício virou manchete pelas suas fraquezas com drogas e uma vida muito atribulada. Mas em que pese toda sorte de crítica, não se pode negar que foi um jogador talentoso e que granjeou fama, riqueza e prestígio.
Mas os tempos mudaram. São outros tempos. Hoje a notícia foca exatamente aquilo que não acontece de bom. No caso, a situação dramática da equipe portenha na iminência de naufragar e não desembarcar na África do Sul.
Então os argentinos passaram a ter dúvidas quanto ao deus que idolatram. Mas, de que deus nós estamos a falar? O deus Maradona? Até onde sabemos sempre foram os brasileiros classificados como místicos e voltados à fé religiosa e ao sobrenatural. Os “hermanos” mais ao sul, ao contrário, sempre foram considerados o último país europeu encravado na América. E de repente, por causa de insucessos dentro das quatro linhas, passaram a duvidar do poder e do potencial do seu deus?
Na verdade não há nem nunca houve um deus Maradona. O que sempre existiu foi apenas um homem comum que acertou algumas vezes e errou outras tantas. Também nunca houve um deus Pelé – nenhum brasileiro, por mais fanático que fosse, chegaria a essa atitude, digamos, sacrílega. Pelé foi Pelé, hábil, virtuoso, competente, vencedor na sua arte e um homem também sujeito a erros e acertos. Como ele houveram outros, que o antecedeu. E por que, em sã consciência, os argentinos haveriam de imaginar que Maradona é um deus? Baseados em sua falta de visão de futuro? Talvez, considerando-se que um deus, por mais segunda linha que seja, jamais cometeria os erros que ele vem cometendo. E também porque um país que carece de heróis tem que, desesperadamente, inventar métodos capazes de compensar essa carência; e o que é que faz o bom marketing? Inventa um deus; e esse deus, por uma falha inexplicável, não teve a percepção de enxergar que o contra-ataque brasileiro seria (como foi) mortal. E que dizer das bolas na trave portenha contra o Paraguai, nessa quarta-feira? Teriam sido as mãos invisíveis do deus Maradona que impediram que a derrota não fosse uma goleada? Ou foi apenas a boa sorte?
Não importa o que poderia ter ou não acontecido. Na análise capenga deste cronista o que existe de fato, de concreto, é a absoluta consciência humana de que nem Hitler resolveu o problema da Alemanha a lhe prometer um Reich de Mil anos, nem o deus Maradona poderá salvar o selecionado argentino, porque tanto um quanto o outro, e respeitadas as diferenças cronológicas e históricas, são personagens do teatro humano e da comédia de erros que essas personagens desempenham no curso desse momento chamado vida.
A Argentina poderá ir à Copa como não ir. Qualquer selecionado é candidato potencial ao título – uns por tradição e por um currículo invejável, outros porque estão evoluindo e também têm todas as chances de ganhar o caneco –, mas ninguém, em seu juízo normal, seria campeão porque o seu técnico ou o seu dirigente de federação tem o título presunçoso e absurdo de deus.
Nada contra os hermanos argentinos, mas um pouco menos seria já o primeiro passo para que resista a chama da esperança que poderá levá-los à Copa de 2010.
Nem Mandela, nos seus vinte e sete anos de prisão, depois de liberto recebeu honraria tão detestável, e é bom que se diga que Nelson Mandela ficou preso por defender os direitos e a liberdade do seu povo, algo bem mais honroso e digno daquele que o técnico da seleção argentina ousou fazer.
Está na hora de a Argentina repensar melhor os seus conceitos de divindade.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Ouço alguém dizer

Ouço alguém dizer que não há nada mais a fazer, e fico perplexo. Lembro-me de que Hemingway, no auge do seu desespero como escritor, concluíra a mesma coisa em relação à literatura, e por outros motivos prováveis meteu-se uma bala de espingarda na cabeça. O que ouço não me cai como algo plausível. Deveria eu pensar pessimistamente acerca das coisas dos outros, das relações humanas, dos resultados políticos como se o mundo houvesse sofrido uma descarga de estupidez, como se a humanidade tivesse sido criada à imagem e semelhança de um gênio de caráter duvidoso. Não cogito ficar discutindo os conceitos misteriosos da criação divina, nem questiono a existência ou não de Deus. O que me induz a refletir sobre a vida e suas conseqüências são as pessoas e suas mentalidades. Os sistemas, as regras, as atitudes, a educação formal, o que leva a pessoa a matar e morrer, o que faz uma nação ser nação e outra apenas um país de explorados, sem identidade e sem perspectivas, tudo resulta da capacidade intelectual do tecnicamente humano implementar. O nosso mundo, este que vemos e tocamos, este que defendemos e destruímos, este de quem falamos e várias outras vezes ignoramos, este mundo mensurável, tangível, finito é o mesmo planeta azul que desejamos definitivamente preservar – se para tanto há consciência de preservação – e em outras ocasiões a nossa fúria egoística seria capaz de acionar o botão e fazê-lo virar pó.
Ouço alguém falar de coisas absolutamente inexplicáveis, de como se conseguiu produzir tanta mixórdia e tantas infelicidades. Então a questão não é porque há desorganização social ou porque a justiça é ou não cumprida. O fator de análise é o homem, o ser humano e suas imprevisíveis reações. O que faz a diferença, na realidade, é viver o livre-arbítrio – um conceito avançado de decisão que separa o homem do bicho – e que prenuncia aquele brilho que tornará o homem um herdeiro automático do Criador. Como foi o surgimento, como e quando ocorreu a gênese, se eram iguais ou diferentes não se poderá dizer que seja possível explicar e mesmo entender. O filósofo é o que vai atrás de uma resposta e não se contenta com esquivas, nem em ficar com a dúvida e morrer com ela. Tudo tem uma explicação; e a inquietação filosófica é o traço marcante de que o gesto inicial de criação partiu de uma sabedoria que transcende a nossa própria inteligência. Questionar o inquestionável – não por menor razão alguns pensadores geniais chegaram a abraçar involuntariamente a loucura, que os engoliu – acaba sendo a função do filósofo, ainda que a ciência esquadrinhe todo o tempo e o tempo todo para provar que o somos significa um estágio anterior que fomos, e se fomos algo anterior, hoje somos e aconteceu não por acaso nem por acidente, mas por meios e métodos que nada mais são do que questões cientificas comprováveis.
Não é preciso ficar macambúzio cogitando coisas alienantes e incompreensíveis, como se fosse caso de vida ou morte avaliar o peso do ar, as cores dos olhos do caracol, a mutabilidade das nuvens nos céus, a direção imprecisa e improvável das folhas ao vento, pois que de tudo isso poderemos depreender que tudo está sobre uma linha reta e nada lhe foge ao controle. Aqui me faço lembrar um poema de Alberto Caeiro quando diz: “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na natureza não é porque saiba o que ela é, mas porque a amo, e amo-a por isso, porque quem ama nunca sabe o que ama nem sabe porque ama, nem o que é amar... Amar é a eterna inocência, e a única inocência é não pensar...”
Tamanha propriedade só poderia ser descrita por um poeta sensível e questionador, que se fingia poeta para se demonstrar um filósofo a filosofar, ainda que dissesse que a eterna inocência é não pensar ele próprio não cessava, jamais, de fazê-lo. O escritor pensa, o filósofo pensa, a criança apenas pensa nas coisas que lhe apraz exclusivamente. De resto, quanto menos se pensar melhor. Mas não pensar significa alienar-se; e viver alienado não é o ponto ideal da pessoa, mas uma forma de excluir-se. E o que é o mundo, afinal, senão um amontoado de gente que busca desesperadamente ser aceita, fazendo uso de todos os recursos necessários para que suas ações sejam admitidas e aprovadas. Talvez, então, se explique porque Hemingway matou-se; o seu desespero não era causa, mas efeito de um transtorno de interpretação diante do mundo que o circundava. E tão perplexo era que não pensou duas vezes até estourar os miolos. Porque não via mais nada que realmente valesse à pena. Se tivesse pensado com método, e não se deixasse envolver pelos seus próprios pensamentos perturbados, talvez tivesse conseguido evitar a atitude absurda do suicídio, porque se havia algum problema insolúvel por desvendar, pondo fim à vida ela apenas abreviou a solução transferindo-a para um tempo futuro que somente a ele pertence.
Ouço alguém dizer que nada mais de original de escreveu ou se disse, que os gregos já não tenham escrito ou dito. Mas isso é tão implausível! Séculos indevassáveis separam-nos daqueles tempos. O que talvez não tenha mudado são os sentimentos e os sentidos humanos, estes cada vez mais arraigados aos homens porque são o cerne de todas as questões e respostas de todas as perguntas. Ainda muito se escreverá e se falará. O homem ouvirá sempre alguém a dizer isto ou aquilo, ou simplesmente ignorará o que se diz apenas por comodismo ou porque não queira padecer dores transferíveis. Eu disse dores transferíveis? Mas o que eu quis dizer, afinal? Aquelas dores que postergamos para outro tempo, quando estivermos prontos para entendê-las? E quando é que entenderemos, de fato, sobre as nossas dores?Ouço alguém dizer que isto ainda não acabou...

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Esquecidos

Dura realidade aquela quando deixamos de ser lembrados! Literalmente se diz, com alegre desconcerto e jocosidade, que fomos esquecidos. Ah, dura realidade, dura vida! Mas quantos não são esquecidos, e nem por isso deixam de ser importantes.
Alguém lembra o primeiro beijo recebido na infância? Ou a primeira puxa de orelhas, quando se atreveu a baixar a cabeça para ver o que havia debaixo daquela saia (ou era um vestido?) que nem se sabe quem vestia?
O primeiro bicho de estimação, a primeira queda quando brincava... Essas coisas passaram e ninguém (ou quase ninguém) mais lembra, exceto aqueles seres iluminados com memória vertiginosa, mas que não lembram o que comeram ontem. Tudo é possível neste mundo de Deus.
A primeiro comunhão, as aulas de catecismo, aqueles catecismos proibidos que circulavam paralelamente, de mão em mão, provocando ufas e uaus intermitentes, naqueles tempos antiguissimos que a mera gravura desenhada supria as necessidades fisiológicas daquela geração de hábeis manipuladores. Alguém se lembra das caras e dos rubores?
Da primeira professora, enfezada e parcial - um prenúncio cruel do que seria o mundo adulto do futuro -, ou aquela de pernas torneadas e deliciosamente sugestivas, a alimentar as imaginações e a pôr em prática a criatividade da classe. Como se chamava ela mesmo? Nilza? Nilda? Neusa? Antipática, sim; mas muito gostosa, sim também.
Contudo tudo faz parte dessa coisa de "agora me deu um estalo e eu me lembrei" que circunda o nosso segundo mundo mental: o que vige e o que se aposentou. Ambos reunidos dão o tom e o colorido desta realidade em que muitos acabam esquecidos por pura questão de marketing.
Acho que ao terminar este texto eu me lembre que esqueci de algo que era imprescindível e fundamental. Porém eu terei a vantagem de dar uma continuidade fazendo acontecer o "Esquecidos 2" como se fosse um roteiro de um filme curto, mas essencial ao que lembra, pensa e escreve - no caso específico, eu mesmo.
Assim, vamos deixar que as lembranças aflorem como aves de arribação, que voltem às suas origens ou, que na melhor das hipóteses, retornem de onde vieram. Nisso reside a capacidade de ir e vir, viagens infindáveis, algumas boas, alegres, outras tristes, lamentáveis.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

A falha

Existe desde os primórdios da consciência humana. Quem é que não falhou na vida? Quando se estabeleceu a meta, calculou-se o objetivo e visualizou-se o resultado, e no final, quando tudo parecia inevitavelmente certo eis que acontece um imprevisto, um fato novo, algo que não estava programado, e tudo vai por água abaixo.
A falha humana, o erro de cálculo, a decepção depois de avaliar as consequências do inesperado. Não tem sensação mais desagradável que a falha, a derrota ainda que momentânea mas bastante forte para causar um impacto destruidor. Um soco na boca do estomago. A certeza de que todo o esforço envidado se perdeu, foi em vão.
Mas a falha também nos mostra quão imperfeitos somos, principalmente àquelas pessoas que fazem com que suas vidas sejam pautadas apenas por ações notáveis, perfeitas, intocáveis. No alto da sua superestimada avaliação pessoal elas se consideram maravilhosamente competentes. O mundo feito por Deus é imperfeito, elas - criaturas de Deus - muito pelo contrário. Contudo o fracasso também faz parte do jogo, da investida que diariamente praticamos em direção ao fim comum. A vida, em si, é uma longa caminhada que tem início e fim estabelecidos; não por nós, mas por um conjunto de leis que extrapolam a nossa compreensão.
A falha humana é um erro do qual precisamos tirar proveito e aprender com ele. Todo erro é factível, não ser humano infalível - nem mesmo o Papa, ainda que a súmula da Igreja Romana diga o contrário. Esse detalhe é discutível e podemos desenvolver, a seu tempo, uma reflexão sobre ele, mas que exigirá um outro momento.
Para agora, o melhor a fazer é refletir sobre a falha não genérica nem impessoal, não discutir sobre os desvios de percurso disto ou daquilo, mas falar sobre a falha que convive conosco no cotidiano, a palavra inadequada, o gesto apressado e impensado, o olhar de censura, a perda de controle de uma situação, um encontro que se faz e que poderia ser evitado ou, melhor, um encontro que se podia evitar e que por presunção ou teimosia acaba acontecendo com reflexos nada favoráveis. Tudo isso é um aspecto abrangente da falha, da falta de atenção, da iniciativa precipitada e desastrosa que poderia ser evitada.
Falhar qualquer um falha. Do mais anônimo cidadão á mais expressiva autoridade, ela não discute o caráter hierárquico, até porque está incrustada na condição humana e na sua capacidade de tomar decisões que podem resultar em sucessos ou fracassos. São essas decisões que atormentam a alma do ser humano. Quantas não foram as vezes que se pretendeu transferir esse momento crucial para outra ocasião? O medo gera a insegurança, que gera a inquietação, o suor profuso, a ansiedade, as pupilas dilatadas e a sensação de que o tempo se congelou. É o medo de que não dê certo, logo, medo de falhar.
É da natureza humana assumir posições, opiniões, pertencer a um grupo, ser aceitou ou repelido, mas com a agravante de que temos a consciência disso. O animal em bando acaba sendo apenas um membro biológico daquele grupo, baseado no seu instinto e não em considerações racionais e filosóficas. Nós, muito pelo contrário, agimos de forma deliberada e consciente. Às vezes não muito consciente, mas com a presumida suspeita de que poderemos estar agindo sem saber ao certo se os resultados consequentes serão bons ou ruins. Mas temos a certeza palpável de que poderão ser bons ou ruins.
A falha é, em algumas ocasiões, fatal e irrecorrível. A falha numa mesa cirúrgica pode representar a vida ou a morte. A falha num cálculo numa espaçonave pode acarretar o sucesso da empreitada ou o fracasso trágico.
Falha é sinônimo de fracasso, de desprestígio, de perda de status, uma nódoa curricular, um olhar mais prolongado de censurada por esta ou aquela comunidade, o passaporte do fracasso profissional e outras sequelas prováveis. A pior das falhas é aquela que não se pode rever e consertar. Aquela que deixará marcas para o resto de nossas vidas. A nossa sociedade tem vivido entre as faixas mensuráveis entre a falha presumida e a falha deliberada. E essa aspecto cruel podemos observar amiúde na composição da célula chamada família onde o ato falho é um eufemismo para riscos previsíveis e evitáveis que, ainda assim, são produzidos às pencas pelas atitudes nem sempre responsáveis das pessoas.
Não há falha mais dolorosa e triste que a familiar, aquela que só vamos perceber quando os fatos acumulados por décadas não têm como ser retroagidos e alterados. A maturidade humana traz a sabedoria, mas até que se chegue a esse nível satisfatório de lucidez muitas coisas que poderiam ser trocadas por outras deixam de acontecer. E muitos não chegarão à maturidade para refletir sobre os erros e acertos cometidos.
Mas fiquemos por enquanto neste ponto. Falemos sobre outros aspectos por conta de ser um tema extenso, complexo e repleto de alternativas.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Para tudo há uma explicação

Nada acontece por acaso. Todo fato tem sua conseqüência, e todo gesto irresponsável é passível de juízo.
O que acontece hoje conosco, como país e como povo, não é casual nem um deslize caprichoso de alguma divindade. Há os que crêem em Deus, outros em deuses. Há os que crêem em dinheiro e poder e em nenhuma restrição moral, desde que não magoem os seus sentimentos, nem os melindrem.
Mas de modo geral, se atentarmos bem para o que acontece – e os noticiários diários são unânimes em render longas laudas explicativas ao assunto –, veremos que um fedor muito grande se propaga rapidamente para todos os lados. O mau cheiro é insidioso, ofensivo, incomodo e desconfortável. Não que necessariamente haja corpos mortos espalhados pelo país; não, não há de um jeito explícito; há, porém, no aspecto retórico da palavra. Uma metáfora que ganha corpo e se recrudesce dia após dia.
O Senado é a casa que detém poder. A ele recaem várias atribuições, onde algumas se destacam e têm peso. Compete a ele julgar o chefe-maior, o vice, ministros de estado, comandantes das Forças Armadas, membros do Conselho de Justiça; cabe-lhe escolher Ministros de Tribunais de Contas indicados pela Presidência, diretores do Banco Central, Procuradores Gerais da República; ele autoriza operações financeiras externas e internas, dos Estados, Territórios, do Distrito Federal; estabelecer limites da Presidência, dispor de limites globais, eleger Conselhos da República, avaliar o funcionamento do Sistema Tributário Nacional e daí vai.
Como se vê, o Senado tem muito poder. Poder de decidir, de incidir, de atuar, de destoar, de fazer e desfazer. E esse mesmo local de tanta concentração de poder fede. Fede muito. E não bastasse o fedor que exala, ainda tem a capacidade de gerar lucidez dentro de alguns de seus membros que, cambiantes e enxovalhados, com um mínimo de decoro e pudor, vêm a público e declaram que a casa está ruindo. Que lhe falta credibilidade. Que a orgia inicia a sua trajetória descendente.
O senador Pedro Simon, um dos últimos baluartes da decência, declara em alto e bom som, que tem vergonha de voltar a Porto Alegre (sua cidade). Vergonha? Por isso é que se pode dizer da sua conduta decente: ele ainda tem vergonha. A mesma que conduz o infausto condenado a subir os degraus do cadafalso e a arrepender-se dos pecados cometidos em outros tempos – quando ainda era um mero mortal suscetível de erros e de fraquezas. A mesma vergonha que teria que nortear a vida política dos senhores legisladores e que, contudo, passa ao largo e se escarafuncha em lamaçais contíguos às suntuosas instalações de seus gabinetes providos de ar condicionado, de um número quase inverossímil de servidores, toda essa opulência gastadora e perdulária custeada pelo sacrifício absurdamente alto de toda uma nação anônima que vive à margem, que é convidada por força e por imposição a participar desse festim, deixando de ter saúde decente para sustentar os maravilhosos serviços médicos que esses representantes, e seus familiares, desfrutam; deixando de ter transporte digno para bancar, dura e irrevogavelmente, os carros oficiais e os fretes particulares de suas excelências, porque eles são, de fato, seres iluminados e detentores do privilégio de viverem além da vida e da morte. Mas nem por isso deixam de exalar esse fedor horrível que sufoca e faz-nos engasgar.
Que se remexa no fundo das gavetas de suas vidas “impolutas”, e não se poderá garantir que as mãos venham do mesmo jeito que entraram. Ou que do fundo dessas gavetas mal arejadas haja algum tipo de vida que não seja aquela que se compraz com o ranço e o bolor, com manchas tão arraigadas às paredes internas dessas gavetas insuspeitas, que mesmo o mais forte dos alvejantes é incapaz de tornar as paredes das gavetas como eram originalmente.
Assim é o coração, assim é a alma, assim é a hipocrisia e o som rascante e dúbio de suas vozes nas tribunas a imiscuírem-se das responsabilidades, mas pressurosos em encontrar explicações e justificativas para isentarem-se de quaisquer culpas. Mercê a pressão da consciência, essa a única que fará efetivamente o papel de juiz, nada se lhe poderia obrigar a renderem-se aos fatos e àquela admissão honrosa de erros cometidos e de um arrependimento honesto. Antes, o mau cheiro decorre da putrefação da própria desfaçatez com que se conduzem, aureolados por honrarias que não lhes conferem mérito, drapejados por galardões que maculam o espírito do prêmio, e que faz com que o verdadeiro herói seja sempre aquele anônimo que se deu em prol da causa e do valor justo. Não terá sido diferente a reação dos fariseus aparvalhados, quando se deram conta, naquele momento, de que aquele que expirava no Gólgota era, de fato, o Filho do Deus que eles diziam acreditar, mas que repeliram sistematicamente por medo e por arrogância, por orgulho e por preconceito.
Até onde possa se compreender o que são, os políticos mostram-se tão distantes e diáfanos à realidade circundante, como se fossem, repito, seres iluminados e designados por alguma divindade caprichosa e parcial.
Por que os privilégios de ficaram acima da lei e da ordem?
Por que serem blindados por regras que servem para protegê-los de suas cafajestadas, e que ao povo resta apenas acreditar no sobrenatural e na intervenção divina tardia?
Qual, realmente, o espírito da Justiça? Onde cabe o direito do que governa e do que é governado?
As nossas ruas e avenidas já não têm a segurança e o frescor dos tempos de nossos avós. E quando um senador diz que “Getúlio saiu da vida para entrar para a História; e que Lula saiu da História para entrar para a vida”, ele diz que não há mais a mística de que o homem público seja digno representante de uma nacionalidade. Antes, ele – homem público –, se transmudou numa figura patética sem escopo moral e sem dignidade. Os seus interesses pessoais e íntimos cauterizaram-lhe a clareza do raciocínio e tornaram-no em apenas um espectro de algo que ganhou forma e tomou gosto pela opulência, pelo poder, pelo estar acima de qualquer julgamento, das carteiradas do “sabe com quem está falando?”, e o completo distanciamento dessa arraia-miúda que, assim como no longínquo 1789, se ergueu e tombou a Bastilha, incitada por vozes de comando que apenas confirmavam o que suas opacas vidas traduziam em miséria, ostracismo, repulsa por parte da realeza que os governava.
Caía o absolutismo e seu alheamento às coisas chãs para dar lugar aos revolucionários que fariam com que as coisas voltassem a ter sentido.
Como a semeadura fora feita, era imprescindível que a colheita fosse levada a cabo. Liberdade, Fraternidade e Igualdade eram as razões pelas quais o povo erguia sua voz e clamava um “Nós estamos vivos!”.
Certamente que para tudo há uma explicação. E se de um lado havia uma consciência política de que apenas um tem o direito ao poder absoluto, expurgando-se o feudalismo e o direito aos privilégios herdados por nascença, todo sentido passava a existir ao se execrar das mentes a idéia de isolamento que aquela realeza utilizara, dando lugar à busca (realmente difícil, quase utópica) de uma igualdade de direitos.
Nada mais claro e evidente do que acontece nos rincões das Terras de Santa Cruz – este Brasil, cuja designação se atribui, de forma simplista, ao pau-brasil –, mas que tem origem ainda mais profunda, podendo ser eco das entranhas celtas como das fenícias. Quantos feudos ainda resistem? Quantas fortalezas à semelhança da Bastille se negam a pisar o verdadeiro chão?
Não sem razão o fedor cresce, porque a volúpia excedeu-se a si mesma. Tomar o governo e coroar-se governante não é suficiente. Querem mais. Extrapolam e usam os atributos para tornar fáceis todas as coisas que teriam que ser garimpadas à força de suor, lágrimas e cansaço. Os caminhos facilitados geram a corrupção, o tráfico de influencia, a transação de favores, desde que se cumpra o dito de que “uma mão lava a outra”, distorcendo o sentido dos ditados, incorporando sentido dúbio e questionável às tarefas mais modestas, e o que era para ser exemplar e pleno de virtudes se mostra tenebrosamente cruel, injusto e faccioso.
Os fatos da vida estabelecem a sabedoria, que de humanidade se reveste e se perpetua. Assim como os filósofos, que pensam e concebem teorias e idéias, tanto mais o homem que é ser pensante também concebe conceitos e vive acreditando neles, morre por eles, equivoca-se por eles.
Disse Rousseau:
“O primeiro que tendo cercado um terreno se lembrou de dizer: "Isto é meu", e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: "Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdido se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém"
Sim, para tudo há uma explicação. Às vezes não muito clara, nem tão óbvia, mas o tempo, esse senhor de pertinaz eficiência e perseverança imorredoura, cumprirá os seus desígnios, e nada será tão inevitável quando isso.

sábado, 15 de agosto de 2009

Há tempo para calar

Depois de alguns dias em silêncio quase absoluto (eu apenas deixei de escrever um pouco), retorno à minha velha forma: escrever, assim como respirar e comer, andar e olhar ao redor, é um ato consequente. Apenas é preciso, vez ou outra, mudar os ares, os hábitos, dar uma volta no outro quarteirão, observar que há outras casas e cada uma delas com seus detalhes e particularidades. Notar que há um outro semáforo além daquele que tradicionalmente você observa e obedece. A sabedoria e a intuição dizem que você deve obedecê-lo, sob risco de não ter olhos para olhar o céu.
Sim, parece patético, mas é bem isso que acontece. Por mais atento que sejamos é sempre indispensável ficar ainda mais atento às loucuras do trânsito e suas máquinas mortíferas. O que é essa vida, não? Um par de sinais coloridos definem a sorte das pessoas, a vida ou a morte. Patético, deveras.
A melhor forma de andar nas ruas entulhadas de gente, de pontos de onibus, de pessoas distraídas que se chocam contra outras apenas porque estão desatentas, é fixar a atenção nos pés, concentrar-se neles, sentir o chão sob a planta do solado dos seus sapatos. Notar quão variável é a planura do chão, e notará que é desigual, irregular, cheio de armadilhas. Assim que sua atenção ficar concentrada você nem perceberá como as distâncias se tornam menores, o tempo diminui, você chega ao seu ponto de destino sem maiores problemas.
Diz-se que é um ato zen o de focar naquilo que se faz e não desviar a atenção para nada mais.
A mesma coisa imaginar um imenso lençol branco em um varal a esvoaçar suavemente ao ritmo de uma brisa em um dia claro e luminoso.
Eu estaria escrevendo tudo isso por alguma razão? Ah, sim, claro, estaria. Na verdade houve aquele tempo anterior em que me calei. O calar significou não escrever; não significa que tenha parado de pensar. Isso não! Não há como evitar os pensamentos. A disposição de sentar-se e colocar os pensamentos ordenadamente numa folha de papel é que não aconteceu, ainda que eles me invadissem como uma horda tártara.
Foi o meu jeito de mudar de quarteirão, de ver outro semáforo, de observar os detalhes e sinuosidades daquelas outras residências.
Agora eu retomo o meu caminho. As minhas reflexões. As minhas idéias e os ecos das coisas que ouço consciente e inconscientemente.
Agora chegou, novamente, o tempo de falar. Ou, melhor dizendo, de escrever. Até porque eu prefiro falar menos, e escrever é uma maneira muito particular de falar em emitir sons. Para o bem-estar e a saúde dos meus pares circundantes.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Profundo silêncio

Acredito que podemos ficar quietos e nos integrarmos a um estado de contemplação capaz de nos conduzir à condição de paz e harmonia, coisa que não encontramos no corre-corre dos dias, quando a importância possessiva que nos domina e controla é aquela tal necessidade de transformar trabalho em competência, que se transformará em salário, que será a maneira evidente que temos para sermos aceitos nesse formato de existência que é a vida em sociedade.
É uma visão tipicamente ocidental, talvez bastante diferente daquela que o oriental, por exemplo, teria. De repente a necessidade de estar dentro do circulo social implica em oriental e ocidental coincidirem nas mesmas atitudes, porém é um fato notório que ambos, a seu modo, divergem em muitas maneiras de se conduzirem diante da vida.
Nós, e eu me refiro a todos nós que temos a clara tendência de ignorar o claustro e a tranquilidade de um local ermo e quieto, nós precisamos de silêncio. Esse zumbido intermitente dentro de nossos ouvidos é o eco real do progresso e é o preço a pagar por termos que renunciar a tantas coisas que a modernidade nos impinge.
O silêncio é assim tal qual o ar, de que não prescindimos. Mas temos tido as incontáveis oportunidades de abdicar dele a pretexto de falta de tempo, muitas preocupações, reuniões, trânsito, correrias de última hora, e a relação de justificativas se estende a perder de vista.
Infelizmente nós não adotamos o silêncio, e ao nos esquivar dele deixamos de encarar a essência da criação no seu estado mais puro e consistente. O silêncio é um modo claro de oração, que, aliás, vinculamos a credos, tradições religiosas, crendices, superstições, e caimos na armadilha mortal de evitar o silêncio (logo, a oração), por considerar algo menor, próprio de fracos, tolices comezinhas que não levam a lugar nenhum.
O grande tolo é aquele que pouco enxerga da sua própria fragilidade, embora acredite que seja forte e capaz. E quando afrontado duramente, e se lhe mostram quão fraco e incapaz é, ele busca uma explicação e, aí sim, com absoluta convicção, se esquiva da responsabilidade jogando a culpa neste ou naquele. Ele próprio nunca será a sua própria perdição.
E assim vamos, claudicantes, a correr atrás do próprio rabo, quase surdos e em meio ao turbilhão de milhares de watts, agindo como bonecos que articulam a boca, mas que não emitem som; que fingem que falam, mas que apenas gesticulam, como nos velhos filmes do cinema mudo.

Distante, porém não tanto

Diz-se que o que os olhos não veem, o coração não sente. Na verdade o coração é a metáfora da nossa alma, esta sim pensante e sensível às coisas da vida e do cotidiano de nossas vidas pessoais.
Pensamos, e às vezes esquecemos dessa arte maravilhosa de relembrar, nas tantas coisas acontecidas em nossas vidas. As pessoas que vimos e com quem tratamos, a quem dirigimos palavras, olhares, gestos, trocamos impressões e despedimo-nos. Tão logo acontece de dar-se o adeus, há o rompimento inevitável e, de repente, tudo se desmancha como fumaça, como aqueles tolos castelos de areia que insistiamos em fazer, quando pequeninos. A ilusão não era o castelo em si, mas o fato de vivenciar a presença junto àquele imenso oceano, uma espécie de ser vivo capaz de seduzir e atemorizar. Os castelos ficavam sempre para trás, perdidos e disformes. Na memória infantil, contudo, eram os sonhos do dia, os folguedos, a água salgada engolida à força, o medo de afogar-se, a mão providencial de alguém, a certeza da aventura, a ardência no nariz do sal a lavar-nos o corpo e a alma.
Vieram os pais, os irmãos, os filhos, os cônjuges, a família, e nesse trilhar constante e permanente veio a alegria da chegada e a dura tristeza da partida. Mudanças forçadas, necessárias algumas, outras apenas a cumprir o estigma da própria vida: nasce-se para depois morrer-se. Dura e cruel realidade? Decerto ficar longe dos olhos, não poder tocar, não poder dirigir-lhe a palavra, não ouvir-lhe a voz, e esquecer-se, oh meu Deus, o timbre, o calor da mão sobre a nossa mão, e estar certo de que, ainda que tão distante, esses vultos estão próximos, nalgum canto, vivendo uma vida diferente, sem que testemunhemos ou saibamos como isso acontece.
Distante, porém não tanto. As estradas são todas elas traçadas para atingirem uma única meta, o fim comum. Céu, Paraíso, Éden, seja lá o nome que se lhe dê, esse lugar existe, é real, mas não necessita demonstrar por um método cartesiano absolutamente matemático e preciso. A vida não tem a precisão matemática, nas suas incoerências, e contudo é um ato geométrico perfeito porque subtrai, soma, divide e multiplica. Não se perde substãncia, nem propriedades. A vida, e a morte por extensão, são irmãs gêmeas idênticas, que andam de mãos dadas.
Assim, e por uma razão minha - eu creio, não tenho porque me justificar, porque apenas creio -, e exclusiva, eu sei que isto e mais aquilo são as metades simétricas de uma só realidade. Depois, a assertiva de que "cogito ergo sum" só pode consubstanciar o fato de que "penso, logo existo". A vida é um ato de pensar, e como há início, meio e fim, o fim proposto é equidistante deste ponto na mesma medida que está em outro ponto, sem perda de substância e propriedades. Não seremos melhores ou piores, amanhã: seremos o que somos, e nem Céu, nem Paraíso far-nos-á melhores ou piores. A transformação dar-se-á no tempo crescente, logo a caminhada é imprescindível, necessária, fundamental.
Não há lógica, portanto, em acreditar que as distâncias existam. Elas são apenas conceitos nos quais acreditamos, e atingíveis apenas com um vislumbre mental de nos colocarmos lá. Os espaços circundantes são conceituais, assim como estar distante significa não estar tanto.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Dias Gelados

São nesses dias gelados que ficamos muito tristes. É uma tristeza mesquinha, egoista, atrás do vidro embaçado da janela. Dali olhamos para as ruas cinzentas e frias, o vento congelante varre tudo que se lhe aparece à frente. Tristeza mesquinha e egoista porque no calor, com edredom à nossa disposição, uma xícara fumegante de chá ou café, o ar acolhedor dos tapetes, o sofá convidativo, os quadros pendurados nas paredes, e do lado de fora, em algum canto qualquer dessa cidade cinzenta e gelada, vultos negros e inidentificáveis arrastam-se como zumbis.
Mesquinharia nossa, se levarmos em conta que estamos alimentados e protegidos. Sobre nossas cabeças, sabe-se lá um Deus a olhar-nos com candura e amor, também percebe quão sovinas somos em não dividir o calor que abunda e reconforta. Ah, essa cidade cinzenta, gelada e úmida!
O gato ronrona a esfregar-se em nossa perna. O olhar compreensivo do humano lhe concede a graça de um carinho, um afago, e a resposta amorosa do felino a devolver-lhe em reciprocidade a atenção que pediu e recebeu.
Olha para todos os cantos do retangulo da janela, e nada é sedutor. Não há vida, apenas o cinzento em degradê, as sarjetas a escorrer a umidade da cidade que pulsa, ainda que aparentemente adormecida e modorrenta.
O corpo pede que se distenda sobre o sofá e ouça a meia altura uma música suave e penetrante, Na verdade o que roda é um soul de Al Green - How Can You Mend a Broken Heart. A voz que vibra dentro da sua alma é aquela mesma que você pode ouvir. É mais um detalhe desse longo e caudaloso oceano de coisas que lhe sobram, que lhe fazem feliz ainda que distante do mundo e da humanidade.
Há, sim, não há dúvida, um Deus de olhar cândido e amoroso a espraiar-se sobre sua vida pregressa e futura. E Ele dirá: - Filho, por que não agradeces tudo que tens recebido? Por que te enfurnas nessa tristeza sem sentido? O que te faz tão infeliz, que não possa Eu resolver?
Esse pai é pai do dia, do cinza, do frio, do retangular espaço da janela, da minha vida, dos meus pensamentos - ele pensa. Mas que posso fazer se não atinge o meu êxtase?
O olho percorre o dorso vertical do sofá, tão convidativo, e é como se repelisse, sem saber por quais causas, a amante que se insinua. Abate-se-lhe uma melancolia cruel, dolorosa, e sua alma fica tal e qual o dia que se estende lá fora. A alma enregelou-se. O brilho foi-se com o sol que insiste em não chegar a tempo.
Um par de lágrimas, em combinação e em perfeita simetria, escorre sobre o rosto grudado à vidraça. Nem calor nem frio, apenas a melancolia de sentir-se inútil e triste por tanta inutilidade.
Senta-se, fecha os olhos e pensa. Resta-lhe apenas o ato de pensar. E que Deus me perdoe, ele pensa, e em seguida dá um longo suspiro, como que aliviado.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Falamos de loucura

As pessoas se imaginam normais. O normal é normal para si. O normal é encarar a maioria fazendo as mesmas coisas que fazemos. Todos somos normais, nós pensamos. Normais. Mas o que é ser normal? Porque todos fazem as mesmas coisas e pensam as mesmas idéias, podemos dizer que todos são, portanto, normais?
Nesse ritmo maluco em que vivemos, qualquer um pensa o que quer e se acha o que bem lhe apraz. O anormal e o normal são como duas pessoas dentro de um ônibus, sendo que uma tem gripe e a outra AIDS. Olhando-se, à primeira vista ambas são normais. O que as difere, porém, é o que elas trazem consigo. Esse é o grande diferencial entre o que anda segundo princípios e o que não tem princípio algum.
Já que estamos falando de normalidades, de coisas que parecem ser e às vezes não são, e vice-versa, vamos então falar de loucura. Sim, dessa coisa louca que é a nossa triste realidade. A olhar em perspectiva, cada dia e cada notícia já não mais assombra. O que era considerado imoral vestiu-se das roupagens da “legalidade”. Dizer que faz algo imoral, mas que não é proibido é o mesmo que fazer aquilo que alguém, notável da política, disse e que depois se explicou para dizer que não era aquilo que ele queria dizer – a tal história do estupra, mas não mata. Fazer imoralidades, toleradas pela lei – ou camufladas com outros nomes menos provocativos – é algo que se incorporou à nossa (triste) vida mundana.
Claro, eu falo da política e dos seus personagens. Falo das sandices e das impropriedades largamente noticiadas, mas que já não escandalizam tanto... Ou nem escandalizam mais. As pessoas aparentam uma insensibilidade que se desenvolveu na proporção que as informações foram sendo lançadas sobre elas, numa quantidade muito acima do insuportável, e tantas e de forma tão arrasadora que os sobreviventes a essa plêiade de más notícias viram surgir um amálgama a revesti-las, e dessa estranha evolução às avessas surgiu o novo cidadão tolerante – aquele que aguentará à exaustão toda sorte de novas mutações morais.
Já não se pode dizer quem seja normal ou anormal, quem seja libertário ou apenas indecente. A continuidade disso decorre dos inumeráveis pronunciamentos oficiais, em que as autoridades que aí se apresentam são, elas próprias, mentiras de suas próprias invencionices. Elas acreditam em tudo que dizem, e tantas são as afirmações mentirosas, repetidas todo o tempo e o tempo todo, que as mentiras já têm o caráter pragmático de verdades.
Somos nós os tais que, de lucidez em lucidez, começam a se decompor em milhares de fragmentos, e cada pedaço é um resto de uma história inacabada. Eles é que têm razão; nós somos apenas um rascunho mal acabado de uma verdade que nos ensinaram, mas que cai, dia após dia, num estado de completo obsoletismo, a perder seu vigor, seu viço, sua atualidade, a dar lugar a uma espécie de conduta obscura e inexplicável, de equívocos e arrazoados sem qualquer sentido, a nos dizer que nós, os cumpridores de regras, precisamos continuar a acreditar na nossa honestidade e decência, ainda que eles, os personagens das mentiras inventadas, pouco ou nenhum crédito deem às coisas que eles fazem. Afinal, eles fazem o que querem e as tradições e o poder econômico de suas famílias centenárias oficializam a jurisprudência, ainda que para isso seja preciso tripudiar sobre a boa e reta conduta.
Enfim, nós, os novos cidadãos tolerantes, precisamos ser inteligentes e sábios, e adotar a cínica reprimenda do que detém o poder, quando diz que “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Estamos a falar de loucura, não estamos? Nada mais esclarecedor.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Parece ter sido um sonho

Pensamos que vimos tudo na vida, mas muitas vezes nos surpreendemos com as novidades históricas que tiramos de dentro do baú. A História recente do país - a cruel fase dos militares no poder - podemos ver hoje, com todas as cores, dores e fedores sem que nos proibam, porque a censura malsã era amiga das forças dominantes, e essas forças ditavam o que podiamos ou não fazer.
Tanta gente morreu por um ideal; o ideal de liberdade, essa coisa mágica que parece tão natural, tão evidente e inerente a cada cidadão, essa mesma liberdade era um item mal visto pela ditadura.
Mãe perderam filhos, mulheres perderam maridos, filhas sumiram sem dizer um ai que fosse, irmãs, sobrinhas, um universo humano que sonhava em poder dizer tudo, sem mordaças.
Naquele tempo, como agora podemos também perceber, a humanidade era sórdida. O inimigo vestia farda, recebia ordens, planejava, fazia armadilhas, sumia com testemunhas, com corpos, e acreditaram todo o tempo que ficariam impunes.
É preciso reler a história da História. Buscar nas fontes, nas pesquisas, saber o que os que sobreviveram têm a dizer. Sobreviventes dignos, que trazem as cicatrizes de uma era trevosa e maldita. Infelizmente muitos se perverteram. Trocaram as roupas puidas do exilado pelas grifes modernas e caras, investiram na carreira pública e deram mostras de quão frágeis são no que concerne a caráter e probidade.
Já se disse, e eu concordo, que caráter podemos mudar; o que não podemos mudar é a personalidade. Alguns egressos do exílio tornaram-se proeminentes, a luta do passado enegreceu-lhes as lembranças e o "vamos levar vantagem" tornou-se uma prioridade compensatória, até porque o poder, de per si, é uma força, uma energia que envolve e inebria, que puxa a alma do sujeito e faz com que ele aja diametralmente oposto às coisas que ele, outrora, combatia.
A humanidade é sordida? Sim. Vemos isso nos confins do planeta. Em sociedades tão díspares a dividir opulência com misérias extremas. A ficção só nos convida a visitar esse mundo que revestem de um glamour falso, e quando vemos a riqueza de uma cidade mal nos damos conta da miséria que bordeja pelas suas margens, daí dizer-se que são periféricos, anônimos, sem rostos, a voz emudecida pelas incontáveis injustiças, onde saúde, transporte e decência não têm espaço para ocupar essas bordas simultaneamente.
Parece que eu sai de um sonho. Acordei e descobri que vivi de forma indulgente, alheio, ignorando que para eu ter o que tenho foi preciso que muitos morressem, e ficassem esquecidos.
Estou amargo, sim. A amargura de Cristo não deve ter sido fácil. Eu nem me arrisco a imaginá-la, mas a diferença é que Ele era quem era, enquanto eu ainda encaro isso com ódio, muitas vezes, e me aflijo quando descubro coisas terríveis, que viveram ocultas e porque preservavam os direitos constitucionais de certos bandidos.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

As voltas da memória e as lembranças

Penso que são gestos comuns, anônimos e tardios, mas não suficientemente nulos.
Sempre haverá o doce alento de imaginar-se controlando o Tempo,
estabelecendo nossas regras sutis e conformadas, até porque o Destino
é um deus que caminha sobre nossas pegadas.
Há algum tempo eu escrevi um e-mail e postei-o a uma pessoa cujo nome ecoava dentro da minha memória como o clamor de um passado que ainda não estava enterrado e que, nessa transição de estar e não estar, permanecia naquela região cinzenta das nossas lembranças.
Todo mundo tem esse tipo de “período estacionário” onde guarda as pessoas, situações, datas, eventos, conversas, livros, paisagens, uma espécie de arquivo vivo que se gruda e não nos larga, a menos que deixemos de pensar e nos envolvemos com outras coisas. Mas com o passar do tempo esse esquecimento retorna, torna-se esquecimento presente, algo tão palpável quanto a mulher de nossos sonhos e das nossas noites febris.
Ou quando não conseguimos superar essas lembranças, e elas a perambular por nossas idéias se introduzem no nosso cotidiano, pode-se notar o seu cheiro forte e insuportável. Como visita mal-querida, se aboleta numa poltrona, arreganha seus dentes, aquele riso sardônico e amedrontador, espera que lhe ofereçamos um café com bolachas, e diz com todas as letras: ‘Desculpe-me, mas não pretendo retirar-me tão cedo’, mesmo que teimemos que já se faz tarde, que é hora de ir-se. ‘Não, de modo algum’ ela fala, e esse café com bolachas ganha a eternidade.
Todo escritor tem dentro de si um algo qualquer de melodramático. Dentro da sua cabeça giram idéias, conceitos, histórias. Ele até imagina cenas, caras, vestimentas, o tempo gasto entre uma ação e outra, e o papel – seu parceiro permanente, ainda que virtualizado pelo quadrado luminoso do monitor do computador –, passam a registrar toda essa epopéia, esse mundo do faz-de-conta, e ainda que momentaneamente eles tenham o poder divino de criar. Criam e eliminam, inventam e modificam todo um universo de idéias onde memória, História e personagens reais e fictícios interagem com toda naturalidade.
As linhas traçadas eram componentes que integravam uma história vivida há mais de três décadas. E como pululassem de um lado a outro, era preciso expurgar esse passado de um modo que não ofendesse nem magoasse quem quer que fosse. Esse papel teatral do escritor mostra que ele tem seu lado de esquisitices, porque é nele, e tão-só nele que as mordidas do passado ferem. Velhas companheiras, inerentes como sombras, falastronas e ruidosas, não fazem (nunca fizeram, é bem a verdade) questão de serem discretas e recatadas. Ao contrário, são bufonas, cheias de vida, gordas e barulhentas, incapazes de conter os risos que são gargalhadas ensurdecedoras a ecoar durante os dias e as noites, nas vigílias e nos sonhos.
À mensagem seguiu-se a resposta. E de certa forma uma espécie de frustração. Faltou ao amigo destinatário o poder de resgatar a imagem do remetente. O velho Samuca não se recordou do então rapaz magro, jovem e absolutamente ignorante do futuro que eu era. A minha vida caminhou para este momento atual como se ouvisse Pigalle ao acordeon.
Mas o filósofo permitiu-se responder, resposta dada ao desconhecido, até porque não tinha noção do que sucederia após aquilo tudo. Que poder tem uma carta, uma mensagem, um bilhete! Podem as palavras trazer à vida aqueles fantasmas que viviam no limbo de um esquecimento consentido, prisioneiros da individualidade e que se materializam quando são invocados.O velho Samuca respondeu. Este mero comedor de papiros – com a permissão de Kazantzakis, no seu Zorba, O Grego – conseguira recuperar um pedaço dessa história. Os idos de 70 perdem-se nas páginas dos livros e dos jornais. A Redentora foi-se, mas sem que saiba, a falecida, também ela é fantasma ressurreto dessa narrativa absolutamente dispensável, que só serve para refrescar a minha memória e afugentar o Alzheimer para bem longe.

Discutindo coisas do mundo

Hoje me tomei de coragem e escrevi para José Saramago. Nem sei se irá ler. Nem sei se chegará a receber a mensagem. Mas fiz o que achava que tinha de fazer. Afinal, não somos criaturas participantes do mesmo mundo? Não sentimos as mesmas ansiedades, medos, desejos e inquietações? E não é assim, sem alguma insuspeita desconfiança, que chegaremos aos portais do final dos nossos tempos, onde obrigatoriamente teremos que entrar individualmente, sem guias, sem acompanhantes?
Falei-lhe a respeito do encurtamento dos espaços, das distancias que se tornaram menores, quase ínfimas, e da rapidez com que essas notícias chegam até nós.
Também me referi ao envelhecimento precoce de tudo que é gerado, no imediatismo da cozinha fast food dos novos hábitos humanos. Tudo é novo e tudo é velho. O novo de agora é o velho de amanhã. As notícias nossas de cada dia, são novas até o almoço; dali em diante tornam-se velhas, questionadas, desmentidas.
Não me causa maiores surpresas as perdas inevitáveis de certos valores, ou de quase a sua totalidade, diante da perplexidade deste mundo contemporâneo e esquisito. Vidas, guerras, interesses, escândalos, enxurradas exaustivas de más notícias – é isso que tem sido o panorama diante de nossos olhos. Então, por que da estupefação? Por que do espanto? Há ainda coisas capazes de tomá-los de assalto e surpreendê-los?
Saramago escreveu sobre a epopéia corajosa dos imigrantes, a desbravar novas terras e os seus incontáveis sacrifícios para se firmarem nas novas plagas. Hoje, a Europa que pensamos conhecer, é tão arredia e distante quanto eram os novos mundos àqueles sonhadores, que deixaram suas terras, famílias e lembranças para construir um sonho no tal Novo Mundo.
Nós somos, hoje, o Novo Mundo, não tão novo, mas já sequioso de envelhecer porque tem medo de avançar, de aumentar, de prodigalizar novas oportunidades aos sucessores. Não poucas vezes ouvi pessoas dizendo que tinham medo de pôr filhos no mundo, por medo do que viam, por entenderem que era insanidade trazê-los à vida para que herdassem isso que está aí. Não sei se precaução ou apenas covardia. A lógica filosófica interpreta que o novo sucede ao velho, o casto substitui o impuro, a boa idéia prevalece às velhas e viciadas idéias. Mas se lhes falta coragem – e o pretexto é a carestia, a violência, o desemprego, as políticas, as instabilidades atuais – sobra-lhes razões (nem sempre plausíveis e convincentes) para não gerarem filhos.
A meu ver é como ser membro integrante do reino de um rei decadente e imoral e seu reinado apodrecido pelas mazelas e pelos pecados, e o desespero de não ter nenhuma ilusão de que algo de bom possa acabar com a torpeza desse reino. Se não há novas mentes e novas idéias, como pensar em destituir do poder aqueles que fazem dele o que bem lhes apraz? Se não há herói na história, o vilão será sempre o vencedor. Se não há o bem para acalentar os corações, o mal será a certeza de que não há melhores perspectivas senão dores, dores e dores.
No último dia 14 de julho comemorou-se 220 anos da queda da Bastilha e do fim do feudalismo e do absolutismo como conceitos políticos de governabilidade. Foi preciso derramar sangue e degolar muita gente para que isso se firmasse. A transição do excesso para o razoável exigiria da parte dos cidadãos franceses uma dose inigualável de coragem e despreendimento. A Bastilha é uma metáfora incontestável de que nada se modifica apenas pelos lindos olhos daquele que olha a paisagem e percebe nela essas anomalias. É preciso olhar e perceber; sentir a extensão dos problemas e aquilatar as conseqüências; avançar nessa guerra sabendo que sua vida está em jogo, mas que a morte de alguns não será vã se houver bem-aventurança para a maioria. Somente a ganância e o egoísmo ou a idéia absurdamente irracional de higienização étnica é que tornam as guerras uma insanidade irrecorrível. O próprio ato de sobreviver ao dia seguinte é uma guerra que mantemos desde o ato do nascimento até o último piscar de olhos.
Assim tem sido em inumeráveis países do continente africano, das Américas subdesenvolvidas, da Europa falsamente evoluída – dentro de comunidades consideradas civilizadas e altamente industrializadas, ou nas favelas e cortiços a enfeitar os morros e becos escuros das grandes cidades, como provas de que a opulência de poucos quase sempre tem um custo social absurdamente alto e perverso.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

O QUE TENHO QUE SABER, AFINAL?

Não sei o que exatamente eu preciso e tenho que saber. A quantidade de informações diárias, que chega até mim por todos os meios de comunicação, é grande. Como diz o comercial que passa atualmente na TV, a informação envelhece depressa, o conhecimento é para sempre.
Então o que é que eu preciso realmente saber? Essa informação que eu recebo faz parte do pacote de conhecimento de que necessito?
Sinceramente, eu não sei responder. É um verdadeiro massacre. São imagens, sons e cores mescladas por notícias que me bombardeiam de todos os lados, como se fosse um bangue-bangue italiano. É a informação do tempo que fala sobre o calor, o frio, a umidade, a estiagem e as previsões de chuvas, temporais e ressacas.
De outro lado o que explode lá no mundo exterior, a bomba atômica que está sendo elaborada, o governo x, y e z que não se alinha aos interesses da ONU, os Estados Unidos que dizem e desdizem sobre tudo e sobre todos, o que o presidente Lula anda falando, dizendo e não ouvindo, sobre o Enem, sobre o tráfico que cresce, sobre tantas mortes que não sensibilizam, sobre os políticos que vivem se vestindo de atores shakespearianos, e nós o tempo todo com o nariz vermelho de palhaço na cara. Sobre o mercado de capitais, sobre a inflação, sobre a crise, o trânsito caótico, a falta de recursos na saúde pública, a Previdência que vive imprevidente... Ufa!
De que mais precisamos? Estatísticas? Desemprego? Aquecimento global? A gripe H1N1? Quem será o provável campeão mundial na próxima Copa? Quais as causas da queda e do desaparecimento do Airbus do vôo 447?
Somos solapados de todos os lados, e eu, que não sou exceção, acabo entrando nessa roda-viva. Ou capto e assimilo e me adéquo, ou sou engolido pela ignorância dos que sequer sabem o que comeram no jantar de ontem.
O exame vestibular testa sua capacidade de assimilar e decorar informações, mais do que conhecimentos práticos, para colocá-lo, de imediato, no Olimpo dos universitários que, segundo a lenda, farão a diferença. Para quem, eu não sei bem. Talvez para eles. Mas há tantos casos de arrependidos diplomados, que não chego a cogitar que essa diferença seja um meio legítimo, apenas como exemplo, para ajudar o país.
Eu não pertenço nem sou oriundo de elite alguma. Como homem, corri todos os riscos que um homem, do meu tempo, correu. Claro que as décadas sucederam-se e, por conseqüência, as gerações. Hoje são outras formas de pensamento. Pensam de forma mais seletiva, são mais práticos, e quem pode aproveitar as chances não fica para trás, engolindo poeira dos outros. Mas nem todos têm essa boquinha. Eu ainda sou do tempo em que pedir licença era regra; desculpar-se, dizer “por favor”, ou “obrigado”, nada mais que um aspecto padrão da educação. Como disse, sou homem de um outro tempo.
Isso não isenta o jovem de classe média alta de entrar pelos desvãos do vício e ser seduzido pela idéia de que a droga é a solução de problemas que ele, sinceramente, não tem. Ou se tem, são aqueles que nascem da pouca capacidade de se sensibilizar com os problemas daqueles que não tiveram a mesma sorte que ele.
Então quer dizer que ele acaba criando problemas para poder justificar o seu vício?
Não, claro que não. A estrutura mental dele não é tão óbvia assim. E ele não seria burro de entrar numa de horror. Mas que ele tem uma boa dose de idiotice entrando no vício, isso ele tem. Pode ser a bebida, outra forma de veiculo alienante. A má companhia ajuda muito. Induz. Sugere. Tenta. Busca seduzir. Convence. (Nem sempre a culpa é do diabo). E quando ele descobre que entrou num mato sem cachorro, bom, aí a coisa fica feia. Ele já se tornou proscrito, já roubou, já aliciou, já se violentou, já se pôs ao rés do chão.
Eu devo saber dessas coisas? Isso me ajuda de alguma maneira?
Pergunto, pergunto e não consigo responder. Olho ao redor e noto que as coisas continuam na mesmice de sempre. Todo mundo sabe que droga faz mal, mas o que se pode fazer é educar o quase-usuário. Qualquer pode ser usuário, mas somos todos quase - um se entendermos que o ritmo do cotidiano aí das ruas propicia toda sorte de oferta. Erradicar o traficante já se torna uma tarefa muitíssimo mais difícil. Envolve lei, polícia, política, gente que pode tomar posição, governo, toda sorte de autoridade, sistema educacional, etc, etc.
Mas então o que é que eu devo saber, afinal? Olhando o mundo em retrospectiva, todos os dias, quando abrimos os olhos, temos que admitir que somos vitoriosos, porque conseguimos sobreviver a um sem-fim de tentações e altos riscos, e estamos ainda ilesos.
Não significa que estar dentro de casa seja o lugar mais seguro. Se assim fosse não teríamos as histórias trágicas das balas perdidas e dos inválidos do crime.
Já não temos mais as antigas enciclopédias, onde buscava-se respostas às questões comezinhas do colégio, quando o colégio era uma instituição maravilhosamente poderosa – ainda que eu ignorasse a amplitude do seu poder.
Nem me lembro quem era presidente ou governador naquela época. Mas eu já estava a estudar sobre o homem metafísico. Ou sobre a Teoria da Evolução proposta por Darwin.
Sem querer o velho professor Ernesto Moreira, de saudosa memória, nos obrigava a fazer lição de casa durante as férias de meio de ano. Era quase o livro todo de Português, lendo textos e fazendo exercícios – com direito a transcrever em cadernos de brochura tudo isso, mais os significados das palavras, que caçávamos no Aurélio.
Que dureza! E ainda tínhamos que levar na data estabelecida os cadernos com todo o material feito ao colégio, e colocá-los em pilhas enormes naquela classe designada para tal.
Missão cumprida! Agora tínhamos um resquício de férias a gozar.
E ao voltar às aulas, para nossa surpresa, aquelas pilhas enormes de cadernos ainda estavam lá, irretocáveis, do mesmo jeitinho que tínhamos deixado um mês atrás.
A técnica do Ernestão deu certo. Só que eu, nem os meus antigos companheiros, sabíamos que ele, na sua suposta displicência como professor, tinha-nos inoculado com o micróbio do “aprenda-fazendo”, que é o que eu, humildemente, constatei no curso da minha própria vida. Se eu sei algumas coisas, e tenho alguma facilidade no manejo, dentro da língua portuguesa, confesso com humilde reconhecimento, muito devo a duas pessoas: à professa de Português no 1º ano de ginásio, Dona Eliete, e ao Ernestão.
Portanto, o que eu tenho que saber é aquilo que vou descobrindo após o tempo decorrido dos fatos. Enquanto marinheiros nessa viagem da vida, não entendemos muitas vezes a intenção do comandante do barco. Só quando, finalmente, barco e comandante estiverem distantes da nossa convivência diária é que descobrimos o que era preciso, de fato, aprender.
As lições de vida, as experiências, as palavras ditas, os conselhos, as reprimendas, as alterações graduais das vozes – dos sussurros aos gritos – e a simples presença deles, tudo isso responde à questão inicial: Não sei o que exatamente eu preciso e tenho que saber.
Aprendi. Talvez nem tudo que aprendi responda às dúvidas que a própria vida se encarrega de nos colocar no caminho, mas pelo menos existirão dentro de nossa lembrança, do nosso tesouro pessoal, da nossa memória preservada, as figuras importantes que deram sentido a essa dúvida retórica. Terá sido o pontapé inicial da aventura humana em que a educação, mais do que decoreba e capacidade de memorização, é o tijolinho fundamental que, mesmo escondido debaixo de toneladas de concreto, iniciou o alicerce do caráter, quando ter caráter era a coisa mais importante para aquele garoto meio boboca, ingênuo, que sempre acreditou que viajar na imaginação não era cheirar pó, mas simplesmente se enfiar dentro de um livro e navegar dentro dele até a última página.

REFLETINDO SOBRE AS COISAS SIMPLES DA NOSSA COMPLEXA VIDA

Não tenho sido piedoso com você nem comigo mesmo. As minhas palavras, as minhas atitudes, os meus juízos, tudo tem sido muito cáustico, e eu confesso que essa dureza nem a mim tem feito bem.
Reconheço que essa excessiva aspereza magoa. Nada como um gesto doce e suave, assim como a tepidez e a fragilidade da flor; não como a pedrada que estilhaça, machuca, provoca medo. Mas como o vôo do colibri, o andar compassado e silencioso do gato que observa e espera um movimento de carinho. Não o baque surdo do taco contra a bola produzindo aquele som seco de uma explosão e milhares de pedaços, depois de uma boa tacada.
A palavra calma, o olhar a se perder dentro do seu olhar, aquele silêncio recorrente quando as palavras faltam e os pensamentos parecem completar os sons que a boca não produz – tudo isso faz parte da cumplicidade que deixamos de ter. Mesmo as sombras, na sua incongruência de formas, têm a propriedade de serem iguais, agindo de modo similar, não variam, não mudam, apenas vivem a condição de sombras. Assim seria o amor se não inventássemos tantas vertentes para explicar as tantas tolices que praticamos, tentando justificar a canalhice daquele que deprecia e esculhamba, evitando consolar o estúpido que só valoriza quando já não mais tem mais o tesouro entre os dedos.
Eu, como homem, entenderia muito melhor se tivesse nascido sabendo as respostas. Mas dei lugar ao aventureiro e como qualquer perdulário que se despreze, me prendi a regras, a certos critérios bobos que me ensinaram como me comportar, mas que não me deram nenhuma indicação de como contornar as dificuldades, quando elas chegassem.
E elas chegaram, vieram como tudo na vida, sem aviso, sem recomendações, sem grandes alardes. As adversidades são parte dessa escola; aprendi isso às duras penas. Foi preciso passar o maior sufoco para entender que nada se compara a uma boa lufada de ar nos pulmões durante a crise de asma.
Eu um dia descobri você na multidão. Meu coração bateu de modo diferente. Entre tantas pessoas tinha que ser você a pessoa que eu escolheria. Foi difícil. Era difícil. Havia a resistência natural de ambas as partes. Éramos pouco maiores que crianças e pensávamos que já tínhamos aprendido muita coisa. Também éramos tolos e ingênuos, embora nossos olhares não concordassem com isso. Existia a condição da anatomia humana que, a despeito da mais ferrenha educação conservadora castradora, não se submetia aos rigores dos olhares duros, mas reagiam ao toque sutil do coração. Sem querer fazíamos filosofia sem que soubéssemos que o coração tinha razões que a própria razão desconhecia.
As palavras que brotavam eram recheadas de mel. Magoar? Nem pensar! Cada palavra era um elogio, não existia defeito. Grandes conceitos filosóficos eram bobagens. Qualquer frase virava poesia; e a gente adorava colar uma boca na outra. Beijo era eletricidade, e adorávamos ser eletrocutados com freqüência.

Era a época do namoro. O momento histórico do homem, principalmente o homem, quando os hormônios explodem em sua vida interior e exterior, consciente e inconscientemente, não o deixando livre nem mesmo durante o sono.
A vida sempre foi um grande mistério. Quando somos muito jovens nos reservamos para ocasiões especiais, mas nos damos para toda sorte de tiroteio. Depois, quando chegamos a uma idade mais madura, o espírito está mais experiente, os pensamentos bem menos nervosos; aí entendemos que, assim como o vinho, é preciso se preservar, mas sem perder as oportunidades agora mais ocasionais. Porém quando declinamos, não por vontade própria, mas por imposição das circunstâncias ao nosso redor, damo-nos ciência de que o que foi feito, e o que não foi feito, pertencem ao passado e que o que vem à frente só depende da nossa disposição momentânea.
Já não nos desgastamos em palavrórios nem em longos discursos – isso nós deixamos aos políticos. Resta-nos agora administrar a vida, o que nos resta ainda por viver, e as lembranças dos juramentos, promessas, dos afagos e dos beijos, o primeiro ato de amor, as primeiras cenas de ciúme, tudo isso se enrodilha na névoa da memória, que guardamos apenas para nosso prazer pessoal. A ninguém mais interessará saber o que foi feito ou o que foi dito. É quando passamos da condição de homem para a de velho.
Não que ser velho signifique ficar à margem da espécie humana, mas porque a velhice não é necessariamente algo que se opte por ser. Ela é incondicional e opressiva. Ela significa que o processo de maturidade não atinge apenas o espírito, a mente, as idéias, os pensamentos, não aperfeiçoa os modos, dá equilíbrio, sensatez, atitudes corretas, mas desenvolve simultaneamente a decrepitude do corpo. A máquina antes ágil e portentosa cede vez a uma falência gradual em que os movimentos se tornam mais lentos, a própria capacidade de percepção declina, o brilho dos olhos e as cores refulgentes da pele já se toldam de discretas sombras. Toda a tibieza da fase anterior aos primeiros passos começa a ser revivida na fase terminal. Os movimentos são mais truncados, comedidos, aquela relutância não é por ter desaprendido, mas por temor à queda, à fratura, à vergonha. Os membros não obedecem. O espírito, enfim, mostra-se realmente escravizado. A voz perde a energia, a força de expressão. Do urro passamos à fase dos sussurros. As palavras são doces delicadíssimos que mastigamos com cuidado, sorvendo o seu gosto e dando-nos a nós mesmos uma falsa sensação de eternidade, quando na verdade é apenas a forma que encontramos para estender o prazer por mais tempo.

O Exemplo Não Vem De Cima

É tão cansativa a repetição das notícias que vêm do Planalto sobre desmandos e abusos, que a continuidade do procedimento por parte desses senhores, que nada têm de ilustre, é uma ofensa à nossa inteligência e um ato de sem-vergonhice sem tamanho.
Esse mal, que é com certeza contagiante, começou com os escândalos que a Câmara dos Deputados aspergiu para cima, onde nomes e situações foram citados textualmente, mas que as incontáveis CPIs parecem não ter produzido efeito reparador algum.
Diante da leniência da Justiça, do excesso de burocracia e recursos, os causadores de danos ao Erário Público conseguem safar-se e, pior ainda, continuar a molestar com sua fealdade e malignidade o panorama da política nacional, porque como qualquer doença que cause danos – e muitas vezes irreparáveis – deixam seqüelas que se refletem no país e, em particular, no bolso do cidadão que, via de regra, paga a conta dentro daqueles 147 dias que serve, como Jacó, como servidor escravizado, ao Labão da história atual, que no caso é o governo federal.
Agora é o senhor Sarney a mostrar-se indignado diante das acusações que, contudo, não refuta. Interessante que o presidente do Senado, que por cargo e responsabilidade teria que ser pessoa proba e digna, que exerceria a honestidade como uma virtude intrínseca – e não por força de obrigatoriedade – continua a rechaçar essas “veleidades” e diz que não fez nada de errado.
Interessante como a linguagem adquire elementos de neologismo, ou até como recurso de semântica, onde o errado é o certo e o certo é que é o errado.
Assinar decretos em surdina, dar cargos remunerados a pessoas, num evidente “acerto de contas por favores recebidos” a amigos e correligionários, criar mecanismos, suspeitamente legais, para se favorecer em proveito próprio e/ou de sectários que se proclamam colaboradores é ato correto? Ora, Paulo já dizia que tudo é permitido, mas nem tudo é lícito.
O que falta aos nossos políticos, e ao povo que elege, que vota com consciência, que o exemplo não tem vindo de cima. Os nobres políticos têm feito, no mais das vezes, é alijar o povo dos seus interesses fundamentais em detrimento dos seus interesses de curral, de cabresto curto, mantendo o redil apto a pô-lo no poder, a qualquer preço e a qualquer custo.
Se o exemplo não vem do alto, de cima, nem esperemos que haja intervenção divina nessa vergonhosa situação a que estamos expostos há algum tempo, quando tudo começou a vir à luz quando o ressentimento de um fez surgir o famigerado Escândalo do Mensalão, que se espalhou pelo país como um rastilho de fogo no capim seco e esturricado da miséria a que boa parte da população brasileira encontra-se até hoje.
Está na hora de se repensar o que é ser pessoa pública e qual o papel desses senhores que se revestem de leis próprios e se blindam atrás de imunidades parlamentares, foros privilegiados e utilizam recursos de loteria para manterem-se na mais completa e absoluta impunidade quando encontrados em flagrante delito.
Se a Constituição estabelece direitos e obrigações ao cidadão brasileiro, sem lhe ver o rosto, cor, credo, por que não incluir nela, e apenas nela, o cidadão que se pretende ser melhor, especial e diferente?
Em que são diferentes esses senhores? Será o seu sangue de outra cor? Terão privilégios divinos, como exigiam os reis absolutistas? Por que eles podem fazer e desfazer a seu bel-prazer, acobertados por benefícios jurídicos esdrúxulos, e o cidadão comum, que não é comum mas apenas cidadão, que trabalha, pega ônibus, trem, enfrenta transito, não tem chapa especial, não tem verbas indenizatórias, não tem leis que privilegiem seus desatinos e irresponsabilidades fiscais, não pode nada?
Será que os segmentos sociais do país estão condescendendo tanto, com tamanha paciência e tolerância, que esperam que as soluções venham de cima, do mesmo lugar de onde os males são gerados?
Nas Escrituras Sagradas há um trecho expressivo, onde Jesus é categórico e não deixa dúvidas quanto à assertiva que faz, quando diz que de fonte que jorra águas doces não podem jorrar águas amargas.
É bom nos lembrarmos, sempre, e todo o tempo, que o exemplo não vem de cima. Mas em cima há solução se formos fortes e suficientemente dignos para exigir que as coisas voltem à sua normalidade, aos seus verdadeiros trilhos.
Por ora a composição parece estar em denotado descarrilamento.