quinta-feira, 22 de julho de 2010

Tarde de chuva

As crianças ficavam sentadas no alto do muro, as pernas jogadas para fora em direção à rua, e cada pessoa ou veiculo que passava seus olhos acompanhavam com a mesma atenção e curiosidade. Às vezes olhavam-se e riam, como se a piada, que só elas ouviam, fosse tão divertida para arrancar delas sonoras gargalhadas.


Podia-se dizer que estavam alheias a tudo e a todos. Para elas o mundo que passava à frente tinha nenhuma importância, exceto para aquele momento de diversão. Assim que veículos e pessoas desapareciam na distância, elas voltavam seus olhares para a próxima atração que viesse, nesse brincar insaciável por novidades.


O muro era uma velha construção da década de 1920, um bairro que fora povoado por imigrantes eslavos, do Leste, colados ao bairro dos espanhóis e italianos. A divisão de ruas era apenas um limite transponível que elas usavam e abusavam, sem a menor cerimônia. Eventualmente faziam incursões, como um bando de vândalos ensandecidos, no quintal da francesa Jacqueline, cujo marido vivia entrevado numa cadeira de rodas e enrolado num cobertor. Ele ficava no jardim de inverno, olhando a rua, os pedestres, os vizinhos a lhe acenar, aos cumprimentos educados das velhas senhoras a voltar da missa matinal, sempre com aquele olhar cansado e paciente.


Os garotos podiam muito bem entender, mas não era época de entendimentos. Aquilo era apenas um fato corriqueiro, que eles sabiam existir mas cuja explicação de “por que existir” não lhes afetava o senso nem tirava o seu sono. Dos folguedos, pequenos atos criminosos de roubos fúteis, aquilo era farra, era riso, era a magia da infância das ruas. A cidade ainda era um conjunto lógico de pessoas a viver com regras e mínimas gentilezas e educação. Jamais haveriam de imaginar que, anos depois, a rua se tornaria apenas um corredor de escritórios, consultórios e alguns espigões gigantescos, e as velhas casas de pé-direito baixo algo que ficaria apenas na lembrança deles.


Mas ali, no muro, eles chupavam laranjas, estavam descalços e a algazarra era um passatempo ingênuo de crianças em um mundo menos marcado pela violência e pelos vícios criminalizados. Se tanto chegavam a conhecer níveis extravagantes de vícios, isso se devia às referências dos pais a apontar disfarçadamente quem eram os maconheiros do bairro. Crack, cocaína, heroína eram ainda neologismos, que o tempo colaboraria em tornar palavras correntes e usuais.


Um vento abafado com cheiro de terra molhada batia em seus rostos. Os cabelos ruivos do garoto contrastavam com os crespos castanhos-escuros do outro. Stanislau era filho e neto de polacos. Ibrahim, ainda que tivesse nome árabe, era filho e neto de espanhóis. Com o passar dos anos iriam entender certas peculiaridades da Península Ibérica e a rudeza de vida do Leste Europeu sob a mão de ferro do comunismo.


Foi Stan quem cogitou que choveria. Ibrahim olhou para o lado e as nuvens já se carregavam de tons cinzentos e um negror que prometia. Alguns riscos sutis de luminosidade, e um estridular que vinha de longe, indicavam que era chuva, e da brava.


Irina Del Manto, a mãe de Ibrahim, saiu ao portão e acenou para o garoto.


- Sua mãe tá chamando – Stan disse. Ele chupava um bagaço esboroado de uma laranja que prometera ser suculenta.


- É, ela não gosta que eu fique na rua quando vai chover. Ela tem medo.


- Medo, medo do quê?


- Não sei – ele respondeu. - Algum medo igual ao dela. Ela tem medo de chuva, de trovão, de relâmpago.


- Nunca ouvi dizer que alguém tivesse medo de chuva. Chuva não mata.


Ibrahim pensou, olhou para ela, olhou o amigo, acenou para ela e voltou a falar com ele:


- Pode ser. Mas ela tem medo. Deve ser alguma coisa quando veio para o Brasil.


- Os velhos sempre dizem coisas gozadas e esquisitas. Meu avô vive dizendo umas coisas que aconteceram que eu nunca entendi. Eu finjo que estou entendendo só para não desagradá-lo, mas na verdade não entendo nada.


- É, eles têm um monte de esquisitices. Mas vou ter que entrar. /


Pulou para o chão num salto, olhou para o amigo e prometeu que voltaria no dia seguinte. O ruivinho meneou a cabeça confirmando.


As gotas eram grossas e ao toque com a pele pareciam bolinhas de gude. Explodindo atenuavam o impacto inicial. O céu se fechara subitamente. Stan desceu tão rápido quanto o amigo, viu quando entrava pelo portão acompanhado da mãe, que sempre tinha um lenço florido na cabeça, e não esperou que sua mãe viesse aos gritos chamá-lo daquele jeito nervoso, em polonês, que era o idioma que conversavam dentro de casa.


Não demorou muito para o mundo desabar com ventania, o aguaceiro intenso e os estrondos dos trovões acompanhados de perto pelas faíscas alucinadas que saiam de dentro das escuridões das nuvens.


Era um fim de tarde comum, exceto pela chuvarada e pelo cheiro intenso e provocante de terra. A vegetação vibrava ao toque devastador dos ventos a lavar tudo, sem ignorar os mais recônditos lugares. Naquele momento solene ninguém contestaria a supremacia da natureza, e a solução era esperar a chuva passar para poder assistir a Sessão Zig-Zag, se a energia elétrica não acabasse antes.



Um comentário:

  1. A infância parece ser a etapa da vida mais pura, mais descomplicada, mais autêntica, irresponsável... O seu conto, fez-me lembrar um livro que li na minha adolescência... "Os meninos da Rua Paulo". Poucos livros, são tão belos e tão tristes, como este...Assim como os meninos da rua Paulo, os meninos de Tarde de chuva, são crianças, que querem e aproveitam a liberdade da aventura de uma época... Vc descreve com clareza e riqueza de detalhes, cada gesto, cada fato... o cheiro de terra molhada,o sopro do vento na vegetação, a despreocupação do brincar na rua... A maior e talvez, única preoupação da mãe, medo de chuva, de raios e trovões... e a obediência. Nada como a volta à infância... Obrigada por mais esta oportunidade... reportar-me a infância, brincadeiras nas ruas sem preocupações...

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