sexta-feira, 31 de julho de 2009

Profundo silêncio

Acredito que podemos ficar quietos e nos integrarmos a um estado de contemplação capaz de nos conduzir à condição de paz e harmonia, coisa que não encontramos no corre-corre dos dias, quando a importância possessiva que nos domina e controla é aquela tal necessidade de transformar trabalho em competência, que se transformará em salário, que será a maneira evidente que temos para sermos aceitos nesse formato de existência que é a vida em sociedade.
É uma visão tipicamente ocidental, talvez bastante diferente daquela que o oriental, por exemplo, teria. De repente a necessidade de estar dentro do circulo social implica em oriental e ocidental coincidirem nas mesmas atitudes, porém é um fato notório que ambos, a seu modo, divergem em muitas maneiras de se conduzirem diante da vida.
Nós, e eu me refiro a todos nós que temos a clara tendência de ignorar o claustro e a tranquilidade de um local ermo e quieto, nós precisamos de silêncio. Esse zumbido intermitente dentro de nossos ouvidos é o eco real do progresso e é o preço a pagar por termos que renunciar a tantas coisas que a modernidade nos impinge.
O silêncio é assim tal qual o ar, de que não prescindimos. Mas temos tido as incontáveis oportunidades de abdicar dele a pretexto de falta de tempo, muitas preocupações, reuniões, trânsito, correrias de última hora, e a relação de justificativas se estende a perder de vista.
Infelizmente nós não adotamos o silêncio, e ao nos esquivar dele deixamos de encarar a essência da criação no seu estado mais puro e consistente. O silêncio é um modo claro de oração, que, aliás, vinculamos a credos, tradições religiosas, crendices, superstições, e caimos na armadilha mortal de evitar o silêncio (logo, a oração), por considerar algo menor, próprio de fracos, tolices comezinhas que não levam a lugar nenhum.
O grande tolo é aquele que pouco enxerga da sua própria fragilidade, embora acredite que seja forte e capaz. E quando afrontado duramente, e se lhe mostram quão fraco e incapaz é, ele busca uma explicação e, aí sim, com absoluta convicção, se esquiva da responsabilidade jogando a culpa neste ou naquele. Ele próprio nunca será a sua própria perdição.
E assim vamos, claudicantes, a correr atrás do próprio rabo, quase surdos e em meio ao turbilhão de milhares de watts, agindo como bonecos que articulam a boca, mas que não emitem som; que fingem que falam, mas que apenas gesticulam, como nos velhos filmes do cinema mudo.

Distante, porém não tanto

Diz-se que o que os olhos não veem, o coração não sente. Na verdade o coração é a metáfora da nossa alma, esta sim pensante e sensível às coisas da vida e do cotidiano de nossas vidas pessoais.
Pensamos, e às vezes esquecemos dessa arte maravilhosa de relembrar, nas tantas coisas acontecidas em nossas vidas. As pessoas que vimos e com quem tratamos, a quem dirigimos palavras, olhares, gestos, trocamos impressões e despedimo-nos. Tão logo acontece de dar-se o adeus, há o rompimento inevitável e, de repente, tudo se desmancha como fumaça, como aqueles tolos castelos de areia que insistiamos em fazer, quando pequeninos. A ilusão não era o castelo em si, mas o fato de vivenciar a presença junto àquele imenso oceano, uma espécie de ser vivo capaz de seduzir e atemorizar. Os castelos ficavam sempre para trás, perdidos e disformes. Na memória infantil, contudo, eram os sonhos do dia, os folguedos, a água salgada engolida à força, o medo de afogar-se, a mão providencial de alguém, a certeza da aventura, a ardência no nariz do sal a lavar-nos o corpo e a alma.
Vieram os pais, os irmãos, os filhos, os cônjuges, a família, e nesse trilhar constante e permanente veio a alegria da chegada e a dura tristeza da partida. Mudanças forçadas, necessárias algumas, outras apenas a cumprir o estigma da própria vida: nasce-se para depois morrer-se. Dura e cruel realidade? Decerto ficar longe dos olhos, não poder tocar, não poder dirigir-lhe a palavra, não ouvir-lhe a voz, e esquecer-se, oh meu Deus, o timbre, o calor da mão sobre a nossa mão, e estar certo de que, ainda que tão distante, esses vultos estão próximos, nalgum canto, vivendo uma vida diferente, sem que testemunhemos ou saibamos como isso acontece.
Distante, porém não tanto. As estradas são todas elas traçadas para atingirem uma única meta, o fim comum. Céu, Paraíso, Éden, seja lá o nome que se lhe dê, esse lugar existe, é real, mas não necessita demonstrar por um método cartesiano absolutamente matemático e preciso. A vida não tem a precisão matemática, nas suas incoerências, e contudo é um ato geométrico perfeito porque subtrai, soma, divide e multiplica. Não se perde substãncia, nem propriedades. A vida, e a morte por extensão, são irmãs gêmeas idênticas, que andam de mãos dadas.
Assim, e por uma razão minha - eu creio, não tenho porque me justificar, porque apenas creio -, e exclusiva, eu sei que isto e mais aquilo são as metades simétricas de uma só realidade. Depois, a assertiva de que "cogito ergo sum" só pode consubstanciar o fato de que "penso, logo existo". A vida é um ato de pensar, e como há início, meio e fim, o fim proposto é equidistante deste ponto na mesma medida que está em outro ponto, sem perda de substância e propriedades. Não seremos melhores ou piores, amanhã: seremos o que somos, e nem Céu, nem Paraíso far-nos-á melhores ou piores. A transformação dar-se-á no tempo crescente, logo a caminhada é imprescindível, necessária, fundamental.
Não há lógica, portanto, em acreditar que as distâncias existam. Elas são apenas conceitos nos quais acreditamos, e atingíveis apenas com um vislumbre mental de nos colocarmos lá. Os espaços circundantes são conceituais, assim como estar distante significa não estar tanto.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Dias Gelados

São nesses dias gelados que ficamos muito tristes. É uma tristeza mesquinha, egoista, atrás do vidro embaçado da janela. Dali olhamos para as ruas cinzentas e frias, o vento congelante varre tudo que se lhe aparece à frente. Tristeza mesquinha e egoista porque no calor, com edredom à nossa disposição, uma xícara fumegante de chá ou café, o ar acolhedor dos tapetes, o sofá convidativo, os quadros pendurados nas paredes, e do lado de fora, em algum canto qualquer dessa cidade cinzenta e gelada, vultos negros e inidentificáveis arrastam-se como zumbis.
Mesquinharia nossa, se levarmos em conta que estamos alimentados e protegidos. Sobre nossas cabeças, sabe-se lá um Deus a olhar-nos com candura e amor, também percebe quão sovinas somos em não dividir o calor que abunda e reconforta. Ah, essa cidade cinzenta, gelada e úmida!
O gato ronrona a esfregar-se em nossa perna. O olhar compreensivo do humano lhe concede a graça de um carinho, um afago, e a resposta amorosa do felino a devolver-lhe em reciprocidade a atenção que pediu e recebeu.
Olha para todos os cantos do retangulo da janela, e nada é sedutor. Não há vida, apenas o cinzento em degradê, as sarjetas a escorrer a umidade da cidade que pulsa, ainda que aparentemente adormecida e modorrenta.
O corpo pede que se distenda sobre o sofá e ouça a meia altura uma música suave e penetrante, Na verdade o que roda é um soul de Al Green - How Can You Mend a Broken Heart. A voz que vibra dentro da sua alma é aquela mesma que você pode ouvir. É mais um detalhe desse longo e caudaloso oceano de coisas que lhe sobram, que lhe fazem feliz ainda que distante do mundo e da humanidade.
Há, sim, não há dúvida, um Deus de olhar cândido e amoroso a espraiar-se sobre sua vida pregressa e futura. E Ele dirá: - Filho, por que não agradeces tudo que tens recebido? Por que te enfurnas nessa tristeza sem sentido? O que te faz tão infeliz, que não possa Eu resolver?
Esse pai é pai do dia, do cinza, do frio, do retangular espaço da janela, da minha vida, dos meus pensamentos - ele pensa. Mas que posso fazer se não atinge o meu êxtase?
O olho percorre o dorso vertical do sofá, tão convidativo, e é como se repelisse, sem saber por quais causas, a amante que se insinua. Abate-se-lhe uma melancolia cruel, dolorosa, e sua alma fica tal e qual o dia que se estende lá fora. A alma enregelou-se. O brilho foi-se com o sol que insiste em não chegar a tempo.
Um par de lágrimas, em combinação e em perfeita simetria, escorre sobre o rosto grudado à vidraça. Nem calor nem frio, apenas a melancolia de sentir-se inútil e triste por tanta inutilidade.
Senta-se, fecha os olhos e pensa. Resta-lhe apenas o ato de pensar. E que Deus me perdoe, ele pensa, e em seguida dá um longo suspiro, como que aliviado.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Falamos de loucura

As pessoas se imaginam normais. O normal é normal para si. O normal é encarar a maioria fazendo as mesmas coisas que fazemos. Todos somos normais, nós pensamos. Normais. Mas o que é ser normal? Porque todos fazem as mesmas coisas e pensam as mesmas idéias, podemos dizer que todos são, portanto, normais?
Nesse ritmo maluco em que vivemos, qualquer um pensa o que quer e se acha o que bem lhe apraz. O anormal e o normal são como duas pessoas dentro de um ônibus, sendo que uma tem gripe e a outra AIDS. Olhando-se, à primeira vista ambas são normais. O que as difere, porém, é o que elas trazem consigo. Esse é o grande diferencial entre o que anda segundo princípios e o que não tem princípio algum.
Já que estamos falando de normalidades, de coisas que parecem ser e às vezes não são, e vice-versa, vamos então falar de loucura. Sim, dessa coisa louca que é a nossa triste realidade. A olhar em perspectiva, cada dia e cada notícia já não mais assombra. O que era considerado imoral vestiu-se das roupagens da “legalidade”. Dizer que faz algo imoral, mas que não é proibido é o mesmo que fazer aquilo que alguém, notável da política, disse e que depois se explicou para dizer que não era aquilo que ele queria dizer – a tal história do estupra, mas não mata. Fazer imoralidades, toleradas pela lei – ou camufladas com outros nomes menos provocativos – é algo que se incorporou à nossa (triste) vida mundana.
Claro, eu falo da política e dos seus personagens. Falo das sandices e das impropriedades largamente noticiadas, mas que já não escandalizam tanto... Ou nem escandalizam mais. As pessoas aparentam uma insensibilidade que se desenvolveu na proporção que as informações foram sendo lançadas sobre elas, numa quantidade muito acima do insuportável, e tantas e de forma tão arrasadora que os sobreviventes a essa plêiade de más notícias viram surgir um amálgama a revesti-las, e dessa estranha evolução às avessas surgiu o novo cidadão tolerante – aquele que aguentará à exaustão toda sorte de novas mutações morais.
Já não se pode dizer quem seja normal ou anormal, quem seja libertário ou apenas indecente. A continuidade disso decorre dos inumeráveis pronunciamentos oficiais, em que as autoridades que aí se apresentam são, elas próprias, mentiras de suas próprias invencionices. Elas acreditam em tudo que dizem, e tantas são as afirmações mentirosas, repetidas todo o tempo e o tempo todo, que as mentiras já têm o caráter pragmático de verdades.
Somos nós os tais que, de lucidez em lucidez, começam a se decompor em milhares de fragmentos, e cada pedaço é um resto de uma história inacabada. Eles é que têm razão; nós somos apenas um rascunho mal acabado de uma verdade que nos ensinaram, mas que cai, dia após dia, num estado de completo obsoletismo, a perder seu vigor, seu viço, sua atualidade, a dar lugar a uma espécie de conduta obscura e inexplicável, de equívocos e arrazoados sem qualquer sentido, a nos dizer que nós, os cumpridores de regras, precisamos continuar a acreditar na nossa honestidade e decência, ainda que eles, os personagens das mentiras inventadas, pouco ou nenhum crédito deem às coisas que eles fazem. Afinal, eles fazem o que querem e as tradições e o poder econômico de suas famílias centenárias oficializam a jurisprudência, ainda que para isso seja preciso tripudiar sobre a boa e reta conduta.
Enfim, nós, os novos cidadãos tolerantes, precisamos ser inteligentes e sábios, e adotar a cínica reprimenda do que detém o poder, quando diz que “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Estamos a falar de loucura, não estamos? Nada mais esclarecedor.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Parece ter sido um sonho

Pensamos que vimos tudo na vida, mas muitas vezes nos surpreendemos com as novidades históricas que tiramos de dentro do baú. A História recente do país - a cruel fase dos militares no poder - podemos ver hoje, com todas as cores, dores e fedores sem que nos proibam, porque a censura malsã era amiga das forças dominantes, e essas forças ditavam o que podiamos ou não fazer.
Tanta gente morreu por um ideal; o ideal de liberdade, essa coisa mágica que parece tão natural, tão evidente e inerente a cada cidadão, essa mesma liberdade era um item mal visto pela ditadura.
Mãe perderam filhos, mulheres perderam maridos, filhas sumiram sem dizer um ai que fosse, irmãs, sobrinhas, um universo humano que sonhava em poder dizer tudo, sem mordaças.
Naquele tempo, como agora podemos também perceber, a humanidade era sórdida. O inimigo vestia farda, recebia ordens, planejava, fazia armadilhas, sumia com testemunhas, com corpos, e acreditaram todo o tempo que ficariam impunes.
É preciso reler a história da História. Buscar nas fontes, nas pesquisas, saber o que os que sobreviveram têm a dizer. Sobreviventes dignos, que trazem as cicatrizes de uma era trevosa e maldita. Infelizmente muitos se perverteram. Trocaram as roupas puidas do exilado pelas grifes modernas e caras, investiram na carreira pública e deram mostras de quão frágeis são no que concerne a caráter e probidade.
Já se disse, e eu concordo, que caráter podemos mudar; o que não podemos mudar é a personalidade. Alguns egressos do exílio tornaram-se proeminentes, a luta do passado enegreceu-lhes as lembranças e o "vamos levar vantagem" tornou-se uma prioridade compensatória, até porque o poder, de per si, é uma força, uma energia que envolve e inebria, que puxa a alma do sujeito e faz com que ele aja diametralmente oposto às coisas que ele, outrora, combatia.
A humanidade é sordida? Sim. Vemos isso nos confins do planeta. Em sociedades tão díspares a dividir opulência com misérias extremas. A ficção só nos convida a visitar esse mundo que revestem de um glamour falso, e quando vemos a riqueza de uma cidade mal nos damos conta da miséria que bordeja pelas suas margens, daí dizer-se que são periféricos, anônimos, sem rostos, a voz emudecida pelas incontáveis injustiças, onde saúde, transporte e decência não têm espaço para ocupar essas bordas simultaneamente.
Parece que eu sai de um sonho. Acordei e descobri que vivi de forma indulgente, alheio, ignorando que para eu ter o que tenho foi preciso que muitos morressem, e ficassem esquecidos.
Estou amargo, sim. A amargura de Cristo não deve ter sido fácil. Eu nem me arrisco a imaginá-la, mas a diferença é que Ele era quem era, enquanto eu ainda encaro isso com ódio, muitas vezes, e me aflijo quando descubro coisas terríveis, que viveram ocultas e porque preservavam os direitos constitucionais de certos bandidos.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

As voltas da memória e as lembranças

Penso que são gestos comuns, anônimos e tardios, mas não suficientemente nulos.
Sempre haverá o doce alento de imaginar-se controlando o Tempo,
estabelecendo nossas regras sutis e conformadas, até porque o Destino
é um deus que caminha sobre nossas pegadas.
Há algum tempo eu escrevi um e-mail e postei-o a uma pessoa cujo nome ecoava dentro da minha memória como o clamor de um passado que ainda não estava enterrado e que, nessa transição de estar e não estar, permanecia naquela região cinzenta das nossas lembranças.
Todo mundo tem esse tipo de “período estacionário” onde guarda as pessoas, situações, datas, eventos, conversas, livros, paisagens, uma espécie de arquivo vivo que se gruda e não nos larga, a menos que deixemos de pensar e nos envolvemos com outras coisas. Mas com o passar do tempo esse esquecimento retorna, torna-se esquecimento presente, algo tão palpável quanto a mulher de nossos sonhos e das nossas noites febris.
Ou quando não conseguimos superar essas lembranças, e elas a perambular por nossas idéias se introduzem no nosso cotidiano, pode-se notar o seu cheiro forte e insuportável. Como visita mal-querida, se aboleta numa poltrona, arreganha seus dentes, aquele riso sardônico e amedrontador, espera que lhe ofereçamos um café com bolachas, e diz com todas as letras: ‘Desculpe-me, mas não pretendo retirar-me tão cedo’, mesmo que teimemos que já se faz tarde, que é hora de ir-se. ‘Não, de modo algum’ ela fala, e esse café com bolachas ganha a eternidade.
Todo escritor tem dentro de si um algo qualquer de melodramático. Dentro da sua cabeça giram idéias, conceitos, histórias. Ele até imagina cenas, caras, vestimentas, o tempo gasto entre uma ação e outra, e o papel – seu parceiro permanente, ainda que virtualizado pelo quadrado luminoso do monitor do computador –, passam a registrar toda essa epopéia, esse mundo do faz-de-conta, e ainda que momentaneamente eles tenham o poder divino de criar. Criam e eliminam, inventam e modificam todo um universo de idéias onde memória, História e personagens reais e fictícios interagem com toda naturalidade.
As linhas traçadas eram componentes que integravam uma história vivida há mais de três décadas. E como pululassem de um lado a outro, era preciso expurgar esse passado de um modo que não ofendesse nem magoasse quem quer que fosse. Esse papel teatral do escritor mostra que ele tem seu lado de esquisitices, porque é nele, e tão-só nele que as mordidas do passado ferem. Velhas companheiras, inerentes como sombras, falastronas e ruidosas, não fazem (nunca fizeram, é bem a verdade) questão de serem discretas e recatadas. Ao contrário, são bufonas, cheias de vida, gordas e barulhentas, incapazes de conter os risos que são gargalhadas ensurdecedoras a ecoar durante os dias e as noites, nas vigílias e nos sonhos.
À mensagem seguiu-se a resposta. E de certa forma uma espécie de frustração. Faltou ao amigo destinatário o poder de resgatar a imagem do remetente. O velho Samuca não se recordou do então rapaz magro, jovem e absolutamente ignorante do futuro que eu era. A minha vida caminhou para este momento atual como se ouvisse Pigalle ao acordeon.
Mas o filósofo permitiu-se responder, resposta dada ao desconhecido, até porque não tinha noção do que sucederia após aquilo tudo. Que poder tem uma carta, uma mensagem, um bilhete! Podem as palavras trazer à vida aqueles fantasmas que viviam no limbo de um esquecimento consentido, prisioneiros da individualidade e que se materializam quando são invocados.O velho Samuca respondeu. Este mero comedor de papiros – com a permissão de Kazantzakis, no seu Zorba, O Grego – conseguira recuperar um pedaço dessa história. Os idos de 70 perdem-se nas páginas dos livros e dos jornais. A Redentora foi-se, mas sem que saiba, a falecida, também ela é fantasma ressurreto dessa narrativa absolutamente dispensável, que só serve para refrescar a minha memória e afugentar o Alzheimer para bem longe.

Discutindo coisas do mundo

Hoje me tomei de coragem e escrevi para José Saramago. Nem sei se irá ler. Nem sei se chegará a receber a mensagem. Mas fiz o que achava que tinha de fazer. Afinal, não somos criaturas participantes do mesmo mundo? Não sentimos as mesmas ansiedades, medos, desejos e inquietações? E não é assim, sem alguma insuspeita desconfiança, que chegaremos aos portais do final dos nossos tempos, onde obrigatoriamente teremos que entrar individualmente, sem guias, sem acompanhantes?
Falei-lhe a respeito do encurtamento dos espaços, das distancias que se tornaram menores, quase ínfimas, e da rapidez com que essas notícias chegam até nós.
Também me referi ao envelhecimento precoce de tudo que é gerado, no imediatismo da cozinha fast food dos novos hábitos humanos. Tudo é novo e tudo é velho. O novo de agora é o velho de amanhã. As notícias nossas de cada dia, são novas até o almoço; dali em diante tornam-se velhas, questionadas, desmentidas.
Não me causa maiores surpresas as perdas inevitáveis de certos valores, ou de quase a sua totalidade, diante da perplexidade deste mundo contemporâneo e esquisito. Vidas, guerras, interesses, escândalos, enxurradas exaustivas de más notícias – é isso que tem sido o panorama diante de nossos olhos. Então, por que da estupefação? Por que do espanto? Há ainda coisas capazes de tomá-los de assalto e surpreendê-los?
Saramago escreveu sobre a epopéia corajosa dos imigrantes, a desbravar novas terras e os seus incontáveis sacrifícios para se firmarem nas novas plagas. Hoje, a Europa que pensamos conhecer, é tão arredia e distante quanto eram os novos mundos àqueles sonhadores, que deixaram suas terras, famílias e lembranças para construir um sonho no tal Novo Mundo.
Nós somos, hoje, o Novo Mundo, não tão novo, mas já sequioso de envelhecer porque tem medo de avançar, de aumentar, de prodigalizar novas oportunidades aos sucessores. Não poucas vezes ouvi pessoas dizendo que tinham medo de pôr filhos no mundo, por medo do que viam, por entenderem que era insanidade trazê-los à vida para que herdassem isso que está aí. Não sei se precaução ou apenas covardia. A lógica filosófica interpreta que o novo sucede ao velho, o casto substitui o impuro, a boa idéia prevalece às velhas e viciadas idéias. Mas se lhes falta coragem – e o pretexto é a carestia, a violência, o desemprego, as políticas, as instabilidades atuais – sobra-lhes razões (nem sempre plausíveis e convincentes) para não gerarem filhos.
A meu ver é como ser membro integrante do reino de um rei decadente e imoral e seu reinado apodrecido pelas mazelas e pelos pecados, e o desespero de não ter nenhuma ilusão de que algo de bom possa acabar com a torpeza desse reino. Se não há novas mentes e novas idéias, como pensar em destituir do poder aqueles que fazem dele o que bem lhes apraz? Se não há herói na história, o vilão será sempre o vencedor. Se não há o bem para acalentar os corações, o mal será a certeza de que não há melhores perspectivas senão dores, dores e dores.
No último dia 14 de julho comemorou-se 220 anos da queda da Bastilha e do fim do feudalismo e do absolutismo como conceitos políticos de governabilidade. Foi preciso derramar sangue e degolar muita gente para que isso se firmasse. A transição do excesso para o razoável exigiria da parte dos cidadãos franceses uma dose inigualável de coragem e despreendimento. A Bastilha é uma metáfora incontestável de que nada se modifica apenas pelos lindos olhos daquele que olha a paisagem e percebe nela essas anomalias. É preciso olhar e perceber; sentir a extensão dos problemas e aquilatar as conseqüências; avançar nessa guerra sabendo que sua vida está em jogo, mas que a morte de alguns não será vã se houver bem-aventurança para a maioria. Somente a ganância e o egoísmo ou a idéia absurdamente irracional de higienização étnica é que tornam as guerras uma insanidade irrecorrível. O próprio ato de sobreviver ao dia seguinte é uma guerra que mantemos desde o ato do nascimento até o último piscar de olhos.
Assim tem sido em inumeráveis países do continente africano, das Américas subdesenvolvidas, da Europa falsamente evoluída – dentro de comunidades consideradas civilizadas e altamente industrializadas, ou nas favelas e cortiços a enfeitar os morros e becos escuros das grandes cidades, como provas de que a opulência de poucos quase sempre tem um custo social absurdamente alto e perverso.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

O QUE TENHO QUE SABER, AFINAL?

Não sei o que exatamente eu preciso e tenho que saber. A quantidade de informações diárias, que chega até mim por todos os meios de comunicação, é grande. Como diz o comercial que passa atualmente na TV, a informação envelhece depressa, o conhecimento é para sempre.
Então o que é que eu preciso realmente saber? Essa informação que eu recebo faz parte do pacote de conhecimento de que necessito?
Sinceramente, eu não sei responder. É um verdadeiro massacre. São imagens, sons e cores mescladas por notícias que me bombardeiam de todos os lados, como se fosse um bangue-bangue italiano. É a informação do tempo que fala sobre o calor, o frio, a umidade, a estiagem e as previsões de chuvas, temporais e ressacas.
De outro lado o que explode lá no mundo exterior, a bomba atômica que está sendo elaborada, o governo x, y e z que não se alinha aos interesses da ONU, os Estados Unidos que dizem e desdizem sobre tudo e sobre todos, o que o presidente Lula anda falando, dizendo e não ouvindo, sobre o Enem, sobre o tráfico que cresce, sobre tantas mortes que não sensibilizam, sobre os políticos que vivem se vestindo de atores shakespearianos, e nós o tempo todo com o nariz vermelho de palhaço na cara. Sobre o mercado de capitais, sobre a inflação, sobre a crise, o trânsito caótico, a falta de recursos na saúde pública, a Previdência que vive imprevidente... Ufa!
De que mais precisamos? Estatísticas? Desemprego? Aquecimento global? A gripe H1N1? Quem será o provável campeão mundial na próxima Copa? Quais as causas da queda e do desaparecimento do Airbus do vôo 447?
Somos solapados de todos os lados, e eu, que não sou exceção, acabo entrando nessa roda-viva. Ou capto e assimilo e me adéquo, ou sou engolido pela ignorância dos que sequer sabem o que comeram no jantar de ontem.
O exame vestibular testa sua capacidade de assimilar e decorar informações, mais do que conhecimentos práticos, para colocá-lo, de imediato, no Olimpo dos universitários que, segundo a lenda, farão a diferença. Para quem, eu não sei bem. Talvez para eles. Mas há tantos casos de arrependidos diplomados, que não chego a cogitar que essa diferença seja um meio legítimo, apenas como exemplo, para ajudar o país.
Eu não pertenço nem sou oriundo de elite alguma. Como homem, corri todos os riscos que um homem, do meu tempo, correu. Claro que as décadas sucederam-se e, por conseqüência, as gerações. Hoje são outras formas de pensamento. Pensam de forma mais seletiva, são mais práticos, e quem pode aproveitar as chances não fica para trás, engolindo poeira dos outros. Mas nem todos têm essa boquinha. Eu ainda sou do tempo em que pedir licença era regra; desculpar-se, dizer “por favor”, ou “obrigado”, nada mais que um aspecto padrão da educação. Como disse, sou homem de um outro tempo.
Isso não isenta o jovem de classe média alta de entrar pelos desvãos do vício e ser seduzido pela idéia de que a droga é a solução de problemas que ele, sinceramente, não tem. Ou se tem, são aqueles que nascem da pouca capacidade de se sensibilizar com os problemas daqueles que não tiveram a mesma sorte que ele.
Então quer dizer que ele acaba criando problemas para poder justificar o seu vício?
Não, claro que não. A estrutura mental dele não é tão óbvia assim. E ele não seria burro de entrar numa de horror. Mas que ele tem uma boa dose de idiotice entrando no vício, isso ele tem. Pode ser a bebida, outra forma de veiculo alienante. A má companhia ajuda muito. Induz. Sugere. Tenta. Busca seduzir. Convence. (Nem sempre a culpa é do diabo). E quando ele descobre que entrou num mato sem cachorro, bom, aí a coisa fica feia. Ele já se tornou proscrito, já roubou, já aliciou, já se violentou, já se pôs ao rés do chão.
Eu devo saber dessas coisas? Isso me ajuda de alguma maneira?
Pergunto, pergunto e não consigo responder. Olho ao redor e noto que as coisas continuam na mesmice de sempre. Todo mundo sabe que droga faz mal, mas o que se pode fazer é educar o quase-usuário. Qualquer pode ser usuário, mas somos todos quase - um se entendermos que o ritmo do cotidiano aí das ruas propicia toda sorte de oferta. Erradicar o traficante já se torna uma tarefa muitíssimo mais difícil. Envolve lei, polícia, política, gente que pode tomar posição, governo, toda sorte de autoridade, sistema educacional, etc, etc.
Mas então o que é que eu devo saber, afinal? Olhando o mundo em retrospectiva, todos os dias, quando abrimos os olhos, temos que admitir que somos vitoriosos, porque conseguimos sobreviver a um sem-fim de tentações e altos riscos, e estamos ainda ilesos.
Não significa que estar dentro de casa seja o lugar mais seguro. Se assim fosse não teríamos as histórias trágicas das balas perdidas e dos inválidos do crime.
Já não temos mais as antigas enciclopédias, onde buscava-se respostas às questões comezinhas do colégio, quando o colégio era uma instituição maravilhosamente poderosa – ainda que eu ignorasse a amplitude do seu poder.
Nem me lembro quem era presidente ou governador naquela época. Mas eu já estava a estudar sobre o homem metafísico. Ou sobre a Teoria da Evolução proposta por Darwin.
Sem querer o velho professor Ernesto Moreira, de saudosa memória, nos obrigava a fazer lição de casa durante as férias de meio de ano. Era quase o livro todo de Português, lendo textos e fazendo exercícios – com direito a transcrever em cadernos de brochura tudo isso, mais os significados das palavras, que caçávamos no Aurélio.
Que dureza! E ainda tínhamos que levar na data estabelecida os cadernos com todo o material feito ao colégio, e colocá-los em pilhas enormes naquela classe designada para tal.
Missão cumprida! Agora tínhamos um resquício de férias a gozar.
E ao voltar às aulas, para nossa surpresa, aquelas pilhas enormes de cadernos ainda estavam lá, irretocáveis, do mesmo jeitinho que tínhamos deixado um mês atrás.
A técnica do Ernestão deu certo. Só que eu, nem os meus antigos companheiros, sabíamos que ele, na sua suposta displicência como professor, tinha-nos inoculado com o micróbio do “aprenda-fazendo”, que é o que eu, humildemente, constatei no curso da minha própria vida. Se eu sei algumas coisas, e tenho alguma facilidade no manejo, dentro da língua portuguesa, confesso com humilde reconhecimento, muito devo a duas pessoas: à professa de Português no 1º ano de ginásio, Dona Eliete, e ao Ernestão.
Portanto, o que eu tenho que saber é aquilo que vou descobrindo após o tempo decorrido dos fatos. Enquanto marinheiros nessa viagem da vida, não entendemos muitas vezes a intenção do comandante do barco. Só quando, finalmente, barco e comandante estiverem distantes da nossa convivência diária é que descobrimos o que era preciso, de fato, aprender.
As lições de vida, as experiências, as palavras ditas, os conselhos, as reprimendas, as alterações graduais das vozes – dos sussurros aos gritos – e a simples presença deles, tudo isso responde à questão inicial: Não sei o que exatamente eu preciso e tenho que saber.
Aprendi. Talvez nem tudo que aprendi responda às dúvidas que a própria vida se encarrega de nos colocar no caminho, mas pelo menos existirão dentro de nossa lembrança, do nosso tesouro pessoal, da nossa memória preservada, as figuras importantes que deram sentido a essa dúvida retórica. Terá sido o pontapé inicial da aventura humana em que a educação, mais do que decoreba e capacidade de memorização, é o tijolinho fundamental que, mesmo escondido debaixo de toneladas de concreto, iniciou o alicerce do caráter, quando ter caráter era a coisa mais importante para aquele garoto meio boboca, ingênuo, que sempre acreditou que viajar na imaginação não era cheirar pó, mas simplesmente se enfiar dentro de um livro e navegar dentro dele até a última página.

REFLETINDO SOBRE AS COISAS SIMPLES DA NOSSA COMPLEXA VIDA

Não tenho sido piedoso com você nem comigo mesmo. As minhas palavras, as minhas atitudes, os meus juízos, tudo tem sido muito cáustico, e eu confesso que essa dureza nem a mim tem feito bem.
Reconheço que essa excessiva aspereza magoa. Nada como um gesto doce e suave, assim como a tepidez e a fragilidade da flor; não como a pedrada que estilhaça, machuca, provoca medo. Mas como o vôo do colibri, o andar compassado e silencioso do gato que observa e espera um movimento de carinho. Não o baque surdo do taco contra a bola produzindo aquele som seco de uma explosão e milhares de pedaços, depois de uma boa tacada.
A palavra calma, o olhar a se perder dentro do seu olhar, aquele silêncio recorrente quando as palavras faltam e os pensamentos parecem completar os sons que a boca não produz – tudo isso faz parte da cumplicidade que deixamos de ter. Mesmo as sombras, na sua incongruência de formas, têm a propriedade de serem iguais, agindo de modo similar, não variam, não mudam, apenas vivem a condição de sombras. Assim seria o amor se não inventássemos tantas vertentes para explicar as tantas tolices que praticamos, tentando justificar a canalhice daquele que deprecia e esculhamba, evitando consolar o estúpido que só valoriza quando já não mais tem mais o tesouro entre os dedos.
Eu, como homem, entenderia muito melhor se tivesse nascido sabendo as respostas. Mas dei lugar ao aventureiro e como qualquer perdulário que se despreze, me prendi a regras, a certos critérios bobos que me ensinaram como me comportar, mas que não me deram nenhuma indicação de como contornar as dificuldades, quando elas chegassem.
E elas chegaram, vieram como tudo na vida, sem aviso, sem recomendações, sem grandes alardes. As adversidades são parte dessa escola; aprendi isso às duras penas. Foi preciso passar o maior sufoco para entender que nada se compara a uma boa lufada de ar nos pulmões durante a crise de asma.
Eu um dia descobri você na multidão. Meu coração bateu de modo diferente. Entre tantas pessoas tinha que ser você a pessoa que eu escolheria. Foi difícil. Era difícil. Havia a resistência natural de ambas as partes. Éramos pouco maiores que crianças e pensávamos que já tínhamos aprendido muita coisa. Também éramos tolos e ingênuos, embora nossos olhares não concordassem com isso. Existia a condição da anatomia humana que, a despeito da mais ferrenha educação conservadora castradora, não se submetia aos rigores dos olhares duros, mas reagiam ao toque sutil do coração. Sem querer fazíamos filosofia sem que soubéssemos que o coração tinha razões que a própria razão desconhecia.
As palavras que brotavam eram recheadas de mel. Magoar? Nem pensar! Cada palavra era um elogio, não existia defeito. Grandes conceitos filosóficos eram bobagens. Qualquer frase virava poesia; e a gente adorava colar uma boca na outra. Beijo era eletricidade, e adorávamos ser eletrocutados com freqüência.

Era a época do namoro. O momento histórico do homem, principalmente o homem, quando os hormônios explodem em sua vida interior e exterior, consciente e inconscientemente, não o deixando livre nem mesmo durante o sono.
A vida sempre foi um grande mistério. Quando somos muito jovens nos reservamos para ocasiões especiais, mas nos damos para toda sorte de tiroteio. Depois, quando chegamos a uma idade mais madura, o espírito está mais experiente, os pensamentos bem menos nervosos; aí entendemos que, assim como o vinho, é preciso se preservar, mas sem perder as oportunidades agora mais ocasionais. Porém quando declinamos, não por vontade própria, mas por imposição das circunstâncias ao nosso redor, damo-nos ciência de que o que foi feito, e o que não foi feito, pertencem ao passado e que o que vem à frente só depende da nossa disposição momentânea.
Já não nos desgastamos em palavrórios nem em longos discursos – isso nós deixamos aos políticos. Resta-nos agora administrar a vida, o que nos resta ainda por viver, e as lembranças dos juramentos, promessas, dos afagos e dos beijos, o primeiro ato de amor, as primeiras cenas de ciúme, tudo isso se enrodilha na névoa da memória, que guardamos apenas para nosso prazer pessoal. A ninguém mais interessará saber o que foi feito ou o que foi dito. É quando passamos da condição de homem para a de velho.
Não que ser velho signifique ficar à margem da espécie humana, mas porque a velhice não é necessariamente algo que se opte por ser. Ela é incondicional e opressiva. Ela significa que o processo de maturidade não atinge apenas o espírito, a mente, as idéias, os pensamentos, não aperfeiçoa os modos, dá equilíbrio, sensatez, atitudes corretas, mas desenvolve simultaneamente a decrepitude do corpo. A máquina antes ágil e portentosa cede vez a uma falência gradual em que os movimentos se tornam mais lentos, a própria capacidade de percepção declina, o brilho dos olhos e as cores refulgentes da pele já se toldam de discretas sombras. Toda a tibieza da fase anterior aos primeiros passos começa a ser revivida na fase terminal. Os movimentos são mais truncados, comedidos, aquela relutância não é por ter desaprendido, mas por temor à queda, à fratura, à vergonha. Os membros não obedecem. O espírito, enfim, mostra-se realmente escravizado. A voz perde a energia, a força de expressão. Do urro passamos à fase dos sussurros. As palavras são doces delicadíssimos que mastigamos com cuidado, sorvendo o seu gosto e dando-nos a nós mesmos uma falsa sensação de eternidade, quando na verdade é apenas a forma que encontramos para estender o prazer por mais tempo.

O Exemplo Não Vem De Cima

É tão cansativa a repetição das notícias que vêm do Planalto sobre desmandos e abusos, que a continuidade do procedimento por parte desses senhores, que nada têm de ilustre, é uma ofensa à nossa inteligência e um ato de sem-vergonhice sem tamanho.
Esse mal, que é com certeza contagiante, começou com os escândalos que a Câmara dos Deputados aspergiu para cima, onde nomes e situações foram citados textualmente, mas que as incontáveis CPIs parecem não ter produzido efeito reparador algum.
Diante da leniência da Justiça, do excesso de burocracia e recursos, os causadores de danos ao Erário Público conseguem safar-se e, pior ainda, continuar a molestar com sua fealdade e malignidade o panorama da política nacional, porque como qualquer doença que cause danos – e muitas vezes irreparáveis – deixam seqüelas que se refletem no país e, em particular, no bolso do cidadão que, via de regra, paga a conta dentro daqueles 147 dias que serve, como Jacó, como servidor escravizado, ao Labão da história atual, que no caso é o governo federal.
Agora é o senhor Sarney a mostrar-se indignado diante das acusações que, contudo, não refuta. Interessante que o presidente do Senado, que por cargo e responsabilidade teria que ser pessoa proba e digna, que exerceria a honestidade como uma virtude intrínseca – e não por força de obrigatoriedade – continua a rechaçar essas “veleidades” e diz que não fez nada de errado.
Interessante como a linguagem adquire elementos de neologismo, ou até como recurso de semântica, onde o errado é o certo e o certo é que é o errado.
Assinar decretos em surdina, dar cargos remunerados a pessoas, num evidente “acerto de contas por favores recebidos” a amigos e correligionários, criar mecanismos, suspeitamente legais, para se favorecer em proveito próprio e/ou de sectários que se proclamam colaboradores é ato correto? Ora, Paulo já dizia que tudo é permitido, mas nem tudo é lícito.
O que falta aos nossos políticos, e ao povo que elege, que vota com consciência, que o exemplo não tem vindo de cima. Os nobres políticos têm feito, no mais das vezes, é alijar o povo dos seus interesses fundamentais em detrimento dos seus interesses de curral, de cabresto curto, mantendo o redil apto a pô-lo no poder, a qualquer preço e a qualquer custo.
Se o exemplo não vem do alto, de cima, nem esperemos que haja intervenção divina nessa vergonhosa situação a que estamos expostos há algum tempo, quando tudo começou a vir à luz quando o ressentimento de um fez surgir o famigerado Escândalo do Mensalão, que se espalhou pelo país como um rastilho de fogo no capim seco e esturricado da miséria a que boa parte da população brasileira encontra-se até hoje.
Está na hora de se repensar o que é ser pessoa pública e qual o papel desses senhores que se revestem de leis próprios e se blindam atrás de imunidades parlamentares, foros privilegiados e utilizam recursos de loteria para manterem-se na mais completa e absoluta impunidade quando encontrados em flagrante delito.
Se a Constituição estabelece direitos e obrigações ao cidadão brasileiro, sem lhe ver o rosto, cor, credo, por que não incluir nela, e apenas nela, o cidadão que se pretende ser melhor, especial e diferente?
Em que são diferentes esses senhores? Será o seu sangue de outra cor? Terão privilégios divinos, como exigiam os reis absolutistas? Por que eles podem fazer e desfazer a seu bel-prazer, acobertados por benefícios jurídicos esdrúxulos, e o cidadão comum, que não é comum mas apenas cidadão, que trabalha, pega ônibus, trem, enfrenta transito, não tem chapa especial, não tem verbas indenizatórias, não tem leis que privilegiem seus desatinos e irresponsabilidades fiscais, não pode nada?
Será que os segmentos sociais do país estão condescendendo tanto, com tamanha paciência e tolerância, que esperam que as soluções venham de cima, do mesmo lugar de onde os males são gerados?
Nas Escrituras Sagradas há um trecho expressivo, onde Jesus é categórico e não deixa dúvidas quanto à assertiva que faz, quando diz que de fonte que jorra águas doces não podem jorrar águas amargas.
É bom nos lembrarmos, sempre, e todo o tempo, que o exemplo não vem de cima. Mas em cima há solução se formos fortes e suficientemente dignos para exigir que as coisas voltem à sua normalidade, aos seus verdadeiros trilhos.
Por ora a composição parece estar em denotado descarrilamento.