quinta-feira, 8 de abril de 2010

A pensar ruidosamente

Não há outra coisa mais inevitável na vida de um ser humano que o ato de pensar. Mesmo quando dorme, o homem pensa. Os sonhos são pensamentos e emoções reprimidas, que encontram meios de se escoar. Há aqueles que dormem, mas têm medo, porque sofrem pesadelos. Ao contrário destes, há os que dormem como justos; dormem em quaisquer circunstâncias; no onibus, de pé, retorcidos como galhos depois de um temporal com vendavais inclementes; apoiando a cabeça sobre os braços sobre o tampo da mesa; sentados à cadeira, no consultório; na poltrono do dentista em plena operação de tratamento... E roncam! Roncam a plenos pulmões. Roncam e parecem estar a se estrebuchar.

Nada contra o ronco. Infelizmente é um mal que grassa firme e forte entre boa parcela da população. Se é problema dos dias de hoje, duvido. Certamente o ronco acompanha o homem há muito tempo. É que apenas agora, nos dias atuais, passou a ser visto como algo mais que pitoresco e anedótico: passou à condição de agente de um distúrbio que anuncia um problema ainda maior à frente.

Mas não é de ronco que quero falar. Mas do ato do pensamento. Se há coisa que não conseguimos evitar (mesmo dormindo, daí eu já enveredar pelos caminhos dos sonos barulhentos) é o de pensar.

Tenhamos ou não problemas; estejamos envolvidos com preocupações terrivelmente incômodas ou apenas sob o efeito extasiante de um bem-estar indivisível e inenarrável (aquelas típicas situações em que ficamos a sorrir como se fossemos aqueles tais bobos-alegres), o pensamento é uma espécie de sombra indistinguível que nos segue. A forma clássica de se dizer que temos consciência é que não podemos nos separar de nosso pensamento. Pensamos, logo existimos - assim vaticinou Descartes. E não é para menos! O pensamento move-nos para todas as possíveis direções. Nos insta às alturas do prazer como nos carrega sob o peso malévolo das negatividades. Pode nos conduzir à composição de um poema cheio de derramado amor apaixonado, como construir um plano sórdido e macabro que destruiria, de forma disciplinar, toda uma comunidade. O que produz isso de forma tão veemente? O ato de pensar.

Há pensamentos que têm a propriedade inquestionável de serem ruidosos. Ainda que ouvidos humanos não lhes possam captar, são ruidosos e ensandecidos. Têm o efeito do veneno que mata lentamente, têm a possibilidade de ensurdecer tal o volume que produzem. Lá fora, o silêncio. Contudo aqui, neste momento, partindo deste ou daquele, ou de um grupo, eles são como os fantasmas que assombravam Scrooge. Vêm e cobram; vêm e revelam; vêm e dão-nos a viva consciência do que fizemos, ou estamos a fazer ou que pretendamos fazer mais à frente.

Pensamentos de amor. Pensamentos de ódio. Pensamentos ambiciosos ou apenas tímidos e recatados. Pensamentos de riqueza e poder. Pensamentos de idealizações mirabolantes e apenas por megalomania; pensamentos brejeiros de piadas recordadas; pensamentos de ideias que não se concretizaram sob a forma de inventos geniais... Tudo, enfim, são pensamentos.

E pensar também cansa. E como! Há quem reclame que está exausto. Se lhe perguntamos por quê, dir-nos-ia sem medir palavras: "Pensei muito! Isso me exauriu". E de fato há condições orgânicas em que apenas ficar pensando produz uma exaustão mental enorme. Lembremo-nos, se isso for um motivo de exemplo justificável, quando éramos jovens e nossos hormônios ferviam com tamanha magnitude em nossas veias, que os nossos pensamentos eram capazes de proezas inconfessáveis. Às escondidas constatávamos, não de forma científica, mas empírica, quão poderosos eram aqueles pensamentos concentrados e eivados de luxúria e tensão juvenil. Uau! - dirão os mais velhos, saudosos dos "velhos tempos". Sim, uau! Que quanto uau éramos capazes de produzir. Os devaneios noturnos, os olhares cúmplices, as agitações nervosas daquela massa em formação e a evoluir de jovens à idade madura, os pensamentos eram companheiros instigadores e provocadores, sempre a trazer novas opções para nos envolver nas maiores confusões. E tudo sob a égide de que era preciso queimar tanta energia. Ora, ora. Os hormônios eram energia? A gasolina com que pretendiamos apagar os nossos incêndios orgânicos? Só me resta rir dessa patifaria. Era pura safadeza a nos revelar nuances que o tempo mostraria quais os sérios, quais os absurdamente improváveis, quais os meramente fortuitos e efêmeros.

E pensar que pensar consumia-nos. E eram, e continuam a ser, ruidosamente presentes.

Antes, quando jovens, poderíamos até imaginar que eles, os pensamentos, nos dessem um tempo. Mas, ledo engano, eles nunca se separaram de nós um segundo que fosse. Nós é que ignorávamos a sua presença; porém hoje, quando o declínio do próprio ciclo vital se faz sentir muito presente, quase perturbador, deixamo-nos conduzir pelos seus liames e trajetos. Até chegamos a nos deliciar com suas travessuras, sua lucidez, seus encantamentos, suas inesgotáveis maneiras de nos fazer recordar de tudo que nos aconteceu nos dias de ontem. Foram dias atuais, presentes, foram dias que também gozaram do privilégio de serem o futuro; mas as memórias também são ciclos, e isso nos conforta e consola. Não estamos sozinhos. São eles os parceiros, companheiros de viagem, a nos levar e a dividir conosco suas alegrias e suas virtudes intrínsecas. Já não podemos dizer que sejam tão ruidosos, embora ajam e soem alguns decibéis acima do tolerável. Contudo, nós também já começamos a demonstrar que já não temos a audição portentosa de um Clark Kent...

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