domingo, 28 de março de 2010

O espaço imenso do coração bom

Ele é apenas um músculo que trabalha sem cessar, e de forma incansável, para que nós - os poetas, os loucos, os generosos, os bons, os maus, todo ser que respira e aspira - possamos viver. Mas convencionou-se estabelecê-lo como o símbolo do sentimento, do amor, das coisas da alma. A cabeça é a ideia, o pensamento, a razão; ele, por sua vez, o guardião que abraça as causas perdidas e fecha os olhos para não ver as ofensas nem levá-las a sério.

Pois há quem feche os olhos e enfrente, de peito aberto, toda forma de adversidade. Mesmo as ações menos prováveis, imbuídas talvez de uma força sobrenatural que vem sabe-se lá de onde, elas apenas põem a razão para avaliar, mas é o coração quem irá decidir o que e como fazer.

Retirou da beirada de uma estrada erma um animal semimorto. Esquálido, com fraturas, os olhos baços, devorado pela sarna, o Bob estava condenado - se julgarmos pela razão fria da lógica materialista catastrofista - à morte. Quem, em sã consciência, passaria por aquela estradinha para saber que aquele monte de pelo, ossos e carnes, num processo de sofrimento e dor só cabíveis de explicação por ele mesmo (caso pudesse falar), quem, eu repito, em sã consciência passaria por aquela estradinha, tomaria suas dores, poria suas carnes desminliguidas no banco de trás, e o levaria para um hospital veterinário?

Em um mundo repleto de sons e imagens, de gente correndo e buscando espaços, onde a beleza se traduz por figuras anoréxicas a andar como se estivessem conduzidas por gonzos e cordões invisíveis, de olhares frios e distantes, como se olhassem através de nós e além de nós - numa outra dimensão dos anoréxicos felizes -; numa sociedade que vê, ouve e sabe que ainda se morre de fome por esse mundo de Deus, em que homens tomam o poder e fazem valer sua força forçando as multidões a uma vida sub-humana... Ainda há pessoas que pensam como pensava Agnes Bojaxhiu, aliás, Teresa de Calcutá, que tomava as dores dos seus semelhantes e sobre eles se debruçava. Não foi dela a frase: "O senhor não daria banho a um leproso nem por um milhão de dólares? Eu também não. Só por amor se pode dar banho a um leproso"?

Li em uma biografia curta, li na internet, e sei que ela era mulher capaz de gestos assim. Tanto que o Nobel que lhe concederam reverteu-se em recursos para a sua causa humanitária. Agnes Bojaxhiu via homens como seres viventes e criaturas de Deus. Porém, direis, o Bob é apenas um cão sarnento sem dono. Quem semelhança há entre ele e as pessoas que ela cuidava?

Direi apenas: - é criaturinha de Deus. Pois que o Bob foi cuidado, sim. Gastou-se com ele o que não se previa, mas, far-se-ia novamente tudo de novo se lhe fosse dada a chance de repetir o feito. Amputaram-lhe uma das pernas. Mas mesmo com três o jovem e irriquieto Bob hoje é um carne salvo e recuperado. Nada a ver com aquele monte de nada que a sarna devoraria até a morte. Que as fraturas provocariam infecções de dores terriveis e levariam-no, fatalmente, à morte sofrida. Não a morte do passarinho. Não a morte da sombra quando a luz, ao chegar, espanta e afugenta. Seria a morte do soldado na trincheira, no campo de batalha, exposto a toda sorte de revés, distante dos seus entes e tendo o céu como cobertor. Nada mais que isso.

Felizmente ele encontrou alguém, uma Agnes Bojaxhiu que, com um coração tão imenso, porque é um coração bom, deu-lhe a chance de sobreviver, pela graça de Deus e pela boa vontade de um coração samaritano bom.

A essa nobre alma, a essa Agnes Bojaxhiu de Ibiúna, eu reverencio e homenageio com essas palavras. Nada se pode falar tanto, em laudas e mais laudas, que um muito obrigado, mulher de coração grande não ocupe todos os espaços esvaziados pelo egoísmo humano.

Repito o que aquela Agnes Bojaxhiu disse em resposta a certa pergunta feita.: - "O que eu faço, é uma gota no meio de um oceano. Mas sem ela, o oceano será menor."


quinta-feira, 11 de março de 2010

A ficção mexendo com a vida real

Leio na internet que o Ministério Público entra com ação para coibir o comportamento da personagem Klara Castanho, na novela "Viver a Vida", da Globo, sob a alegação de que as maldades perpetradas pela personagem podem atuar sobre a atriz-mirim e provocar nela danos psicológicos graves.

A questão do Ministério Público se manifestar talvez se prenda ao fato bastante comum nos dias de hoje, na televisão. Tudo é possível ser visto. Parece existir um ar altamente permissivo que afugenta o bom senso e a ética nas peças ficcionais, porque de alguma maneira a busca (e a consequente permanência do programa no ar) está diretamente ligado aos índices de audiência. E audiência significa faturamento. Significa dinheiro em caixa. Significa, em outras palavras, rentabilidade.

A garota é muito esperta, ativa, inteligente, e isso desde os tempos em que era garotinha cheia de ideias e solenes assertivas em comerciais da tv. Dai saltar para a Globo fez com que se tornasse a filha da personagem Dora, da Giovana Antonelli, e saisse daquele estado puro de criança perspicaz para o de uma criança sombria e cheia de articulações maldosas.

Não sei exatamente o que o autor da novela pretendia fazer. Estaria ele querendo discutir as potencialidades criminosas da infância? Ou seria supor que a infância guarda, no seu mundo mágico e desconhecido, uma dose inexplicável de crueldade? Seriam as crianças tão cruéis assim?

De repente a menina passa da candura para a premeditação. Engendra e articula e fica à espreita da sua presa. No caso, Tais Araujo, ou mais exatamente, Helena, sua vítima potencial, porque foi
flagrada aos beijos com o atlético e relutante Bruno, ou Thiago Lacerda. O que, na verdade, o autor pretendia fazer com a garotinha? Torná-la uma serial killer? Uma chantagista inveterada? Uma torturadora de adultos pecadores?

Da ficção o assunto saltou para fora da telinha e entrou no âmbito real da vida cotidiana, dos desníveis, das injustiças, dos pecados sublimados pelas trevas da ignorância geral, e sentindo que o texto pudesse prejudicá-la direta ou indiretamente a niveis psicológicos, julgou ele que era hora de dar um "pare geral" e rever conceitos.

Não há uma comissão legitimamente ética para analisar e observar com acuidade e retidão o que deslancha à vela solta na nossa televisão. Quanto mais bizarrice, melhor. Mais audiência, mais dinheiro em caixa, mais gente sentindo-se a última bolacha do pacote. De repente perdeu-se o senso de ridículo. Nem tudo se pode ou se deve discutir na televisão. É pura demagogia dizer que não há mais espaço para censura. Ora, por falta de controle e por excesso de libertinagem que a nossa vida real, daqui de fora, está a draga em que se encontra! Ninguém respeita ninguém: nem pessoas, nem leis, nem regras.

Não digo que tenhamos que ser puritanos, mas uma boa dose de bom senso e clarividência ajudaria a evitar essa absoluta permissividade que rola pela tv, como se nós é que fôssemos personagens da ficção do mundo exterior. Por acreditar que a censura conteria o direito à liberdade de expressão é que se comete toda forma de grosseria e ofensa a valores e tradições.

A ficção, verdadeiramente, mexeu com a vida real das pessoas, e de tal maneira, que não é nada improvável elas se perceberem agindo como se fossem personagens. E enquanto a audiência em alta, mas com baixa categoria, for o sustentáculo desse sistema corrompido pelo sucesso -a-qualquer-custo, grandes olas serão dados à "liberdade de expressão", ainda que essa liberdade, na verdade, não passe da mais deslavada pouca vergonha jamais vista.

E errado são os puritanos, os conservadores, os sensatos. Até porque eles têm o perfume inequívoco da ficção dos livros...