segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Despedida

Esse dia tinha que acontecer um dia. Sem trocadilhos. Sem piadinhas infames. Apenas dor no coração. E esse dia chegou ontem. Uma incontida inquietação, um profundo desconforto, um mal-estar a incomodar feito dor de cabeça ou qualquer coisa nesse sentido. A pressão do mundo nos ombros, a dura hora de tomar decisões. Não tem coisa pior. Principalmente quando elas não atendem aquilo que vai pelo seu coração. Mas assim é a vida. Assim sempre foi a existência humana. O homem e seu eterno dilema diante da Vida, a ignorância pelo que há-de vir, o medo do enfrentamento, a tentativa nem sempre bem sucedida de fingir um heroismo inexistente, o suor, as mãos trêmulas, uma raiva imensa socando a cabeça feito um boxer indo a nocaute. Esse dia teria que chegar, tão inevitável quanto a morte, as más notícias, o cansaço depois de muito trabalhar, o arroto que se dá após comer feito um boi, o voo dos filhos que deixam o ninho, o olhar a perder-se no horizonte assintindo a mais um fim de dia... Esse dia chegaria como o raio que antecede a borrasca, o grito da torcida depois daquele gol de placa, o apupo dessa mesma torcida acariciando os nervos do árbitro e a memória de sua 'santa' mãezinha. Um dia duro, difícil, inevitável. Essa palavra, por si só, parece algo que traz uma grande carga de coisas ruins. Negativas. A inevitabilidade de tantas coisas. Há pessoas que se desviam do curso natural da Vida apenas porque receiam enfrentar certas situações. Detestam os improvisos. Fogem feito o diabo diante da cruz das coisas chamadas inevitáveis. Mas a própria Vida é uma sucessão de atos inevitáveis. E esse dia faz parte do teatro repleto de atos contínuos de atitudes previsíveis e imprevisíveis. De modo geral, conviver com as perdas não é uma coisa agradável. Doi muito. Incomoda. Aguilhoa feito espinhos. Como cravos a pregar na cruz o Homem Santo. Esse dia pintou-se de final de domingo. Noite fria. Noite úmida. Noite tipicamente paulistana, uma noite de quase inverno na primavera.

Cortei as ruas de uma cidade repleta de carros de farois altos a zumbir feito um enxame de abelhas enlouquecidas. Um domingo molhado, de pistas escorregadias. Janelas fechadas, parabrisas respingados, o som da despedida ronronando atrás de mim como lamentos e pressentimentos, a minha cabeça não querendo assimilar nada daquilo.

O antigo bairro israelita agora dá vez aos bolivianos e coreanos. Mas àquela hora um silêncio de bairro adormecido, mesmo que fosse apenas pouco mais de nove horas da noite. Mas que se esperar de um domingo de antevéspera de feriado religioso? A calçada irregular de paralelepípedos esconde a história de quantos por ali passaram. A viela é estreita, o chão irregular de pedras mal assentadas. As paredes altas e cinzentas não têm o charme de um filme noir, nem de romances clandestinos. Leva-me mais a imaginar que é um local de cena de crime.

Abri a porta da caixa de transporte de animais. Cada um deles foi saindo. Ressabiados. Temerosos. Uma aventura terrível, sem volta. O último, ainda mais relutante, foi tirado a fórceps. O caminho estava livre. A viela totalmente exposta a recebê-los. Não eram convidados. Eram apenas extraterrestres caindo à noite num lugar estranho, escuro, mas que prometia uma convivência em comunidade - longe da prisão, da opressão, da reclusão imposta.

Não tive coragem para conferir onde tinham ido. Eles apenas foram. Sumiram na noite. Esconderam-se no manto das sombras. Talvez eles tenham melhor sorte, agora.

Esse dia tinha que chegar. Não há como disfarçar a emoção. A covardia. A dor no coração e na alma. Mas foi apenas uma despedida silenciosa. Pensei: boa sorte, menino e meninas. Acho que nunca mais verei vocês. Mas acho que será melhor. Agora, pelo menos, vocês terão a chance de viver como a natureza os fez.

Nesse dia eles ganharam a liberdade sonhada. Dizem que os gatos são animais noturnos. Agora, mais do que nunca, eles têm a grande oportunidade de vivenciar essa realidade. O que mais doi é que, com certeza, nunca mais eu os verei. Não tem coisa pior que despedidas.

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