segunda-feira, 26 de julho de 2010

No dia seguinte

No dia seguinte, tudo voltara ao que era. As casas refletiam o seu brilho acanhado, de paredes encardidas, aquela sujeira de velhice, de maus tratos, e os jardins ainda regorgitavam o aguaceiro da tarde anterior.

Ibrahim foi à padaria. A mãe lhe recomendara que trouxesse o pão e o litro de leite. "E cuidado pra não quebrar outro litro!" ela recomendou, não sem ser bem ouvida no seu linguajar arrastado. Ele acatou a ordem, dando dois pontapés em uma bola imaginária, e saiu às pressas pelo portão de madeira, que se abriu e se fechou ruidosamente. Ela a olhá-lo meneou a cabeça, como que sem entender, mas não negou dar um sorriso de satisfação. Afinal, aquele era o seu filho.

Stan, ao contrário, ainda acordava. Era um garoto que adorava dormir. E tinha uma rotina interessante, sendo ele um garoto introspectivo e ligeiramente míope. Ergueu-se, a mãe ralhava que se atrasaria para a escola. Antes mesmo de lavar o rosto ele foi à escrivaninha, abriu a gaveta, tirou um caderno de capa dura azul-marinho, pegou a caneta tinteiro do pai, que usava na escola, e rabiscou algumas linhas. Leu o que escrevera, concordou com a cabeça, e tornou a guardar o caderno.

À porta, encontraram-se os dois. Ibrahim estava feliz. Vivia feliz. Parecia sempre ter visto o passarinho verde, como falava Dona Iva ao vê-lo. O marido dela, um alfaiate que tinha uma perna de pau, sempre lhe pedia que fosse ao armazém comprar cigarros. Era um homenzinho atarracado, cabeça redonda e achatada, lábios grossos e lentes igualmente grossas nos óculos de armação de tartaruga. A voz era rouquenha. Dona Iva, ao contrário, era magra e mais alta do que ele. Tinha um nariz grande e era simpática.

- Viu passarinho verde novamente, Ibrahim? - ela perguntou, quando passou por ela.
- Não senhora - respondeu.
- Tanta felicidade assim até dá inveja - ela falou, sorrindo para ele.
Ele retribuiu o sorriso, deu dois ou três socos no ar, e a mala às costas mal conseguia equilibrar-se. Se fosse gente, a mala seria o peão a domar o potro bravo. Mas aquela "braveza", na verdade, era a energia excessiva do garoto de cabelos crespos e castanhos. Os traços lembravam um marroquino, um judeuzinho. Mas Ibrahim era filho legítimo de uma boa cepa espanhola. O pai até explicava que, no passado, talvez, quem sabe, houvesse mouros metidos no meio. E ria. Assim como Dona Iva, vivia a bradar uma falsa braveza e ria-se quando o assunto era o seu hijo.

- Sonhou de novo? - perguntou ao Stan, que o seguia às duras penas.
- Por que quer saber? - Stan perguntou, olhando-o. Mas continuavam a andar.
- Você sempre sonha - ele respondeu. - E cada vez é uma história maluca que você conta.
- Maluca uma ova! - ele replicou.
- Tá bem - ele contemporizou, rindo. - Apenas diferentes, né?
Stan nada disse. Não valia a pena responder. Ele não ouviria mesmo.

Na escola era sempre aquela bagunça. Um tal de chutar as bolsas dos amigos, o servente correr atrás dele pelas diabruras, e as incontáveis vezes que ia visitar Dona Idalina, na diretoria. Mas era sempre com a mesma volupia e renitência que ele passava boa parte dos seus dias procurando arreliar os colegas, ainda que por Stan ele mantivesse sempre um cuidadoso afeto para não magoá-lo, mesmo quando havia chances reais de aprontar alguma confusão com ele. Estava no seu temperamento. A hiperatividade era uma característica sua. Como dizia sua mãe: "esse moleque acordou com tudo" e assim era.

O Marcos-Baleia, o gordo da turma, era sempre a sua vítima preferida. Gostava do Baleia, só a Dona Rute, mãe dele, é que queria ver o capeta, mas não queria ver o Ibrahim por perto. Detestava-o porque depreciava demais o aspecto físico do filho. Mas ninguém tinha culpa de o Baleia ser gordo, ele comentava. E nunca se sentiria com remorsos pelas troças que fazia.

Stan seguia-a como um cão fiel e sequioso pela próxima invencionice do amigo. Mas também ruminava as imagens que tivera e que escrevera no seu diário. O ar meio distraído conferia-lhe, às vezes, aquele aspecto anuviado de quem nem se dá conta que está vivo. Mas Stan era um garoto inteligente, infinitamente menos agitado que Ibrahim, mas bastante sensato para conter, em várias ocasiões, as maluquices do espanholzinho.

- A gente se encontra depois da lição? - e Ibrahim já premeditava alguma coisa.
- Acho que sim - Stan respondeu. - Vou ver se minha mãe precisa de alguma coisa de mim.
- Depois você me fala?
- Falo. Mas está pensando alguma coisa?
- Pensando em dar uma escapada até a rua de baixo.
- Jogo contra? - Stan perguntou, interessado.
- Aham - ele resmungou, já cogitando algo. - A bola é deles. Vamos chamar o Deco, o Gordo pode ficar na defesa, tem o André sobrinho da Dona Jacqueline, também o Renê, irmão dele.
- Mas ele é fraco de bola1
- Mas sabe dar umas canelas... Depois o pessoal da Mariz não é lá tão bom assim. A gente até pode ganhar...
Riram. Uma anedota que só eles compreendiam.
Na porta, a mãe de Ibrahim já dava dois bons berros para que ouvisse.
- Hora do almoço - vaticinou. - A gente se vê mais tarde.
Deu um tapa no ombro de Stan, e correu. A mãe deu-lhe um abraço, envolveu seus ombros e entraram. Stan ficou ali a olhá-los. Até chegava a pensar besteira, nem parecia mãe e filho. Parecia mais coisa de irmãos.
Olhou para a própria casa. Silêncio. A mãe nunca lhe dera uma abraço, e muito menos no portão. Olhou para o céu. Azul. Luminoso. Sentiu o ar perfumado vindo dos jardins da casa do Nurimar, a menina bonita que tinha umas marcas de feridas nas pernas.
O seu coração bateu um pouco mais forte. Entrou.
Era hora do almoço.

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