quinta-feira, 11 de março de 2010

A ficção mexendo com a vida real

Leio na internet que o Ministério Público entra com ação para coibir o comportamento da personagem Klara Castanho, na novela "Viver a Vida", da Globo, sob a alegação de que as maldades perpetradas pela personagem podem atuar sobre a atriz-mirim e provocar nela danos psicológicos graves.

A questão do Ministério Público se manifestar talvez se prenda ao fato bastante comum nos dias de hoje, na televisão. Tudo é possível ser visto. Parece existir um ar altamente permissivo que afugenta o bom senso e a ética nas peças ficcionais, porque de alguma maneira a busca (e a consequente permanência do programa no ar) está diretamente ligado aos índices de audiência. E audiência significa faturamento. Significa dinheiro em caixa. Significa, em outras palavras, rentabilidade.

A garota é muito esperta, ativa, inteligente, e isso desde os tempos em que era garotinha cheia de ideias e solenes assertivas em comerciais da tv. Dai saltar para a Globo fez com que se tornasse a filha da personagem Dora, da Giovana Antonelli, e saisse daquele estado puro de criança perspicaz para o de uma criança sombria e cheia de articulações maldosas.

Não sei exatamente o que o autor da novela pretendia fazer. Estaria ele querendo discutir as potencialidades criminosas da infância? Ou seria supor que a infância guarda, no seu mundo mágico e desconhecido, uma dose inexplicável de crueldade? Seriam as crianças tão cruéis assim?

De repente a menina passa da candura para a premeditação. Engendra e articula e fica à espreita da sua presa. No caso, Tais Araujo, ou mais exatamente, Helena, sua vítima potencial, porque foi
flagrada aos beijos com o atlético e relutante Bruno, ou Thiago Lacerda. O que, na verdade, o autor pretendia fazer com a garotinha? Torná-la uma serial killer? Uma chantagista inveterada? Uma torturadora de adultos pecadores?

Da ficção o assunto saltou para fora da telinha e entrou no âmbito real da vida cotidiana, dos desníveis, das injustiças, dos pecados sublimados pelas trevas da ignorância geral, e sentindo que o texto pudesse prejudicá-la direta ou indiretamente a niveis psicológicos, julgou ele que era hora de dar um "pare geral" e rever conceitos.

Não há uma comissão legitimamente ética para analisar e observar com acuidade e retidão o que deslancha à vela solta na nossa televisão. Quanto mais bizarrice, melhor. Mais audiência, mais dinheiro em caixa, mais gente sentindo-se a última bolacha do pacote. De repente perdeu-se o senso de ridículo. Nem tudo se pode ou se deve discutir na televisão. É pura demagogia dizer que não há mais espaço para censura. Ora, por falta de controle e por excesso de libertinagem que a nossa vida real, daqui de fora, está a draga em que se encontra! Ninguém respeita ninguém: nem pessoas, nem leis, nem regras.

Não digo que tenhamos que ser puritanos, mas uma boa dose de bom senso e clarividência ajudaria a evitar essa absoluta permissividade que rola pela tv, como se nós é que fôssemos personagens da ficção do mundo exterior. Por acreditar que a censura conteria o direito à liberdade de expressão é que se comete toda forma de grosseria e ofensa a valores e tradições.

A ficção, verdadeiramente, mexeu com a vida real das pessoas, e de tal maneira, que não é nada improvável elas se perceberem agindo como se fossem personagens. E enquanto a audiência em alta, mas com baixa categoria, for o sustentáculo desse sistema corrompido pelo sucesso -a-qualquer-custo, grandes olas serão dados à "liberdade de expressão", ainda que essa liberdade, na verdade, não passe da mais deslavada pouca vergonha jamais vista.

E errado são os puritanos, os conservadores, os sensatos. Até porque eles têm o perfume inequívoco da ficção dos livros...

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