sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Escrevendo......

Pretendi escrever. Mas acho que ficou na pretensão. Escrever é uma coisa dolorosa. Parece simples, elementar, juntar palavras, formas frases, meter um parágrafo aqui e ali, fingir que existe um enredo, e a gente se achando deus.

Escrever é como parir. A mulher até entenderia isso - particularmente as que foram ou são mães. Mas, um homem parindo? Chegaria a ser esdrúxula e esquisita não fosse absolutamente deliciosa a ideia de um homem parindo um filho. Assim é escrever. Por no papel - neste papel virtual que aceita tudo - ou naquela caderneta de anotações de ideias inesperadas e surpreendentes, as coisas que precisa "por pra fora". A gente põe muita coisa pra fora; mas o que vai pela cabeça, ai a coisa pega. Transformar pensamentos e enredos através de um prisma mágico que faz com que ganhem a consistência de palavras inteligíveis é algo muito, muito forte, algo como alquimia ou a descoberta da pedra filosofal ou do elixir da juventude eterna. Aquele momento ficará congelado. Os tempos serão outros, os lugares mudam de lugar, as pessoas vêm e vão, mas aquelas situações escritas não mudarão jamais.

Por isso é que digo que pretensamente quero escrever, e de repente eu percebo que não é lá tão animador ir juntando palavra por palavra e fazendo a gestação de um mundo imaginário que vai se mostrando capaz de ter vida própria. A mesma responsabilidade de ter escrito algo bom tem, por sua vez, a contrapartida de que, em dado momento, o arrependimento sobrevém àquelas coisas que não deveriam ter sido escritas. Nem tudo que se escreve é merecedor de valor. E o pior crítico, sem dúvida, é o autor de seu próprio texto.

Nem há por que se preocupar em ser algo que faça um retumbante sucesso, que esteja nas mãos de todos, que todos leem e gostam, que faz o furor da crítica, que chega a balançar os alicerces da moral e dos bons costumes. Nada disso. Nem todos terão a mesma sorte. O mesmo destino. Nem todos têm o privilégio de ser agraciado com premios. Muitos - e são vários os nomes a citar - ficaram com a fama, o respeito, mas não o reconhecimento. Isso os tornaria menos valorosos?

Eu acho que sou alguma coisa do tipo "escritor", mas não me vanglorio nem me enaltecço por isso. Teria algum motivo?

Acho que vou continuar depois esse papo.....




segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Despedida

Esse dia tinha que acontecer um dia. Sem trocadilhos. Sem piadinhas infames. Apenas dor no coração. E esse dia chegou ontem. Uma incontida inquietação, um profundo desconforto, um mal-estar a incomodar feito dor de cabeça ou qualquer coisa nesse sentido. A pressão do mundo nos ombros, a dura hora de tomar decisões. Não tem coisa pior. Principalmente quando elas não atendem aquilo que vai pelo seu coração. Mas assim é a vida. Assim sempre foi a existência humana. O homem e seu eterno dilema diante da Vida, a ignorância pelo que há-de vir, o medo do enfrentamento, a tentativa nem sempre bem sucedida de fingir um heroismo inexistente, o suor, as mãos trêmulas, uma raiva imensa socando a cabeça feito um boxer indo a nocaute. Esse dia teria que chegar, tão inevitável quanto a morte, as más notícias, o cansaço depois de muito trabalhar, o arroto que se dá após comer feito um boi, o voo dos filhos que deixam o ninho, o olhar a perder-se no horizonte assintindo a mais um fim de dia... Esse dia chegaria como o raio que antecede a borrasca, o grito da torcida depois daquele gol de placa, o apupo dessa mesma torcida acariciando os nervos do árbitro e a memória de sua 'santa' mãezinha. Um dia duro, difícil, inevitável. Essa palavra, por si só, parece algo que traz uma grande carga de coisas ruins. Negativas. A inevitabilidade de tantas coisas. Há pessoas que se desviam do curso natural da Vida apenas porque receiam enfrentar certas situações. Detestam os improvisos. Fogem feito o diabo diante da cruz das coisas chamadas inevitáveis. Mas a própria Vida é uma sucessão de atos inevitáveis. E esse dia faz parte do teatro repleto de atos contínuos de atitudes previsíveis e imprevisíveis. De modo geral, conviver com as perdas não é uma coisa agradável. Doi muito. Incomoda. Aguilhoa feito espinhos. Como cravos a pregar na cruz o Homem Santo. Esse dia pintou-se de final de domingo. Noite fria. Noite úmida. Noite tipicamente paulistana, uma noite de quase inverno na primavera.

Cortei as ruas de uma cidade repleta de carros de farois altos a zumbir feito um enxame de abelhas enlouquecidas. Um domingo molhado, de pistas escorregadias. Janelas fechadas, parabrisas respingados, o som da despedida ronronando atrás de mim como lamentos e pressentimentos, a minha cabeça não querendo assimilar nada daquilo.

O antigo bairro israelita agora dá vez aos bolivianos e coreanos. Mas àquela hora um silêncio de bairro adormecido, mesmo que fosse apenas pouco mais de nove horas da noite. Mas que se esperar de um domingo de antevéspera de feriado religioso? A calçada irregular de paralelepípedos esconde a história de quantos por ali passaram. A viela é estreita, o chão irregular de pedras mal assentadas. As paredes altas e cinzentas não têm o charme de um filme noir, nem de romances clandestinos. Leva-me mais a imaginar que é um local de cena de crime.

Abri a porta da caixa de transporte de animais. Cada um deles foi saindo. Ressabiados. Temerosos. Uma aventura terrível, sem volta. O último, ainda mais relutante, foi tirado a fórceps. O caminho estava livre. A viela totalmente exposta a recebê-los. Não eram convidados. Eram apenas extraterrestres caindo à noite num lugar estranho, escuro, mas que prometia uma convivência em comunidade - longe da prisão, da opressão, da reclusão imposta.

Não tive coragem para conferir onde tinham ido. Eles apenas foram. Sumiram na noite. Esconderam-se no manto das sombras. Talvez eles tenham melhor sorte, agora.

Esse dia tinha que chegar. Não há como disfarçar a emoção. A covardia. A dor no coração e na alma. Mas foi apenas uma despedida silenciosa. Pensei: boa sorte, menino e meninas. Acho que nunca mais verei vocês. Mas acho que será melhor. Agora, pelo menos, vocês terão a chance de viver como a natureza os fez.

Nesse dia eles ganharam a liberdade sonhada. Dizem que os gatos são animais noturnos. Agora, mais do que nunca, eles têm a grande oportunidade de vivenciar essa realidade. O que mais doi é que, com certeza, nunca mais eu os verei. Não tem coisa pior que despedidas.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Ad Aeternum

Algumas vezes temos olhos para olhar. A boca, para falar. O céu nos cobre e as nuvens mudam de formato. Nem tudo, porém, percebemos. Não controlamos nada. A vida instala-se e deixa-nos na hora que quer e quando quer. Os nossos dias são tão ligeiros como o rosto do vento. Nunca veremos o mesmo pássaro duas vezes no mesmo lugar. E os Viadutos do Chá da vida sabem bem do que falo.

A mão tem dedos, e todos diferentes. As famílias têm filhos, parecidos e tão distantes. O cinema mostra o último desastre cinematográfico, feito de milhões de dólares. O rosto do galã é apenas uma máscara. A sua vida é um borralho. E as drogas trafegam pelas avenidas como damas noturnas distintas e respeitáveis, aliciantes e nervosas.

Ontem foi carnaval. Amanhã eu digo que fui. Hoje eu sabia que era amanhã. Agora já não é mais. Olho e não leio o Tao. O píncaro da igreja é um galo. Além da montanha azul reside o espaço negro da chuva de agosto. Enchemos nossas mentes de informações. Sonhamos com diagramas indecifráveis, como hieróglifos. O tormento do insone é não conseguir conciliar a vida e o silêncio da morte que deita ao lado.

Afagam-se, casais trêmulos. Nada, porém, é exatamente como é. Já não é mais. O rosto no espelho era. Agora tornou-se outro. Enfim, a vida é uma imensidão de rugas. A miopia apenas acelera o processo degenerativo. A mente vibra. O corpo, dormente, apenas respira.

Os livros amontoam-se nas bibliotecas desertas. Os prefeitos e vereadores andam na faixa exclusiva, o fiscal do CET olha passivo e finge que não vê. A placa denuncia. Além do Palácio há uma monte de favelas agrupadas. Os corpos esquálidos não são de Biafra. Vieram do Norte. Lá, bem lá, onde não há água. O homem continua dizendo que progredimos. Enriquecemos. Ficamos mais acessíveis.

O boi morreu de sede. Vidas Secas e Graciliano se cruzam no mistério da verdade que os homens esqueceram. Fabiano e a Baleia são figuras enigmáticas. O Brasil viaja nas ondas curtas e médias dos rádios entupidos de vozes ariscas, abobalhadas e de convesas inúteis. A notícia? Ela se renova todos os dias. As velhas remoçam. Fazem plástica. Voltam à juventude. São sempre notícias.

Aqui, dezenove horas. A Voz do Brasil silencia. É hora de deitar a cabeça, conciliar o sono, esquecer o Serasa, o banco, as financeiras. Amanhã, que será logo mais, tudo voltará a ser real.


terça-feira, 5 de outubro de 2010

O Balanço

Fazer balanço não significa amarrar uma corda num grosso galho, uma tábua sem arestas como assento, e transformar uma ideia numa brincadeira. Fazer balanço quer dizer - vou parar para repensar tudo que já fiz.

Aliás isso é o que o ser humano costuma às vezes fazer. Nem sempre. Mais erra do que acerta. Mas ele tem consciência. O que mostra quão próximo está do animal, e quão distante está de ser igual a ele. Exceto pela dor, alegria, fome, frio, percepção do perigo, necessidade de estar junto de seus iguais, homem e bichos não têm muita coisa em comum.

Contudo, o eremita prefere a solidão à multidão. O animal ao lado sentado ou deitado, respeitando o silêncio do homem. Se este se ergue, ele ergue a cabeça e fica de prontidão. Se o homem fala com ele, ele retruca ao seu modo. De modo geral conversam. Cada um na sua lingua. E magicamente se entendem. O divórcio entre homem e bicho é muito raro. Diria quase impossível. As separações dolorosas, entretanto, são comuns. A morte costuma cortar esses elos de amizade. De fraternidade.

Então, por quê fazer balanço? Acho que é a idade. Ou aquele momento da vida que a gente para e fica como que numa encruzilhada. Tem gente perto. Tem trabalho. Tem familia. Tem amigos. O céu, o chão, tudo parece muito igual, como sempre foi. Mas não é bem isso que a gente entende. O balanço é uma forma de por as coisas nos seus lugares. Muita coisa fica desarrumada. Como numa casa onde muitos moram e poucos se preocupam em manter a ordem. A vida urbana primeiro entorpece, depois vai roendo. Quando nos damos conta já estamos pela metade. A vida passou, as coisas foram acontecendo, certas situações não podem mais ser mudadas. Se tanto, podem ser compreendidas. Ou esquecidas. A memória valha algumas vezes. Rostos somem. Nomes. Lugares. Cheiros. Aspectos de perigo ou de prazer incontido. Aquele momento tão esperado. O Papai Noel que não veio e frustrou. O presente que não foi bem o que eu queria. A reprovação. O diploma duramente conquistado. O emprego que decepcionou. A carreira que ficou pelo caminho. Amigos que se foram sem dizer adeus. A primeira namorada que nunca mais viu. Aquelas velhas casas que hoje dão lugar a prédios assépticos, de concreto, cheios de vidros e absolutamente impessoais. Não vemos mais árvores. Nem jardins. Cachorros nas ruas são muitos, mas não aquele pequeno fox paulistinha, nem o pastor alemão do vizinho. O delegado empertigado, andar duro feito um pau rolando pela calçada, mas simpático o bastante para cumprimentar uma criança.

Fazer balanço. Mas a gente fica pensando todo o tempo. Vamos ao passado, ficamos lá um bom tempo. Voltamos ao presente, o barulho atormenta e cansa. O cheiro de fumaça sufoca. A poluição é um fato que nunca se viu antes. Ai então tentamos ir para o futuro. Mas ele é tão intangível, improvável, construções feitas de fumaça, lugares sem definições de cores e traços. O céu não tem uma cor definida. As pessoas são dificeis de serem imaginadas mais velhas. A única coisa a acenar por ali é a figura esquiva da morte. Mas ela é sutil, bastante educada para não se mostrar de corpo inteiro. A percepção momentânea faz com que a chamemos para tomar assento na conversa, mas logo a dispensamos. Ela não fala. Ela é paciente, espera. O futuro é chato. Criança não gosta de pensar no futuro. Ela vive o momento atual, já, este instante. Não guarda reservas para gastar amanhã. Amanhã ela transforma seu entusiasmo inocente em novas energias para novos folguedos e novas travessuras. Por isso é que criança gosta de balanço, não de fazer balanço.

Chega, porém, o momeno intrinseco da realidade. Abre-se os olhos pela manhã. Olhos empapuçados, enevoados, a cabeça parecendo descolada do pescoço. A sensação de que o sonho há pouco vivenciado ainda está ao lado tentando manter sua presença efêmera e esfumaçada. O jato de água do banho faz com que toda a névoa da noite se dissipe e o dia, mesmo nublado e sem os raios acolhedores do sol a nos aquecer o rosto, indica que é mais um dia. Um novo dia.

Ele também fará parte da história desse balanço. E adultos que somos não iremos desfrutar da alegria mágica da criança que ainda somos, nem nos atreveremos a nos sentar num assento solitário em algum parque público, e dar bons impulsos e nos entregar à exuberância de sentir o rosto fustigado pelo vento a lambê-lo e a beijá-lo, os cabelos esvoaçando, querendo chegar às alturas do infinito. O balanço que nos alegraria tanto cede vez ao outro, aquele que quase sempre trará velhas feridas e cicatrizes à luz do dia, ou da noite, e em vez de ficarmos felizes com os pensamentos, talvez choremos de saudades, ou nos irritemos com certas coisas que gostariamos de não ter feito.

O balanço que nos balançava será outro - será agora aquele nos balançará perturbadoramente por dentro.