Nossa! Fico tão emocionado quando
penso nessas coisas, que chego a me dar coriza e, espontaneamente, as lágrimas
despencam dos meus olhos e eu não consigo esconder o que sinto... se saudade,
se alegria ou apenas uma vontade imensa de poder reviver o que já se foi.
Lembrar a primeira vez que você
olhou para alguém, e a demonstrar interesse por esse olhar curioso, recebeu em
reciprocidade um olhar exatamente igual em intensidade. E essa troca de olhares
revelaria que vocês dois são hoje a confirmação do destino ao reuni-los. Se diz
que, um para o ouro, são “p amor de minha vida!”, que a gente fala como uma
oração, um mantra, incapazes de viverem um longe do outro.
Há nessa relação de amor
companheirismo e amizade, aqueles momentos no curso da existência que de tão
dramáticos, levam as pessoas a se desesperarem, sentem medo, aquele frio
congelante que explode na espinha e paralisa o cérebro de um modo tão doloroso,
que ambos começam a sofrer dores absurdas, inexprimíveis, cqda um de um jeito e
por motivações distintas, e mais uma vez isso apenas comprova que o elo que os
une transcende as palavras, porque é um vínculo invisível e poderoso que não se
explica, ele apenas confirma quão interligados essas duas almas estão; nesse
casp não são os opostos que se atraem, mas os iguais.
De olhos fechados, , perdida a
consciência, o corpo, se pensasse por si só, diria estar vazio de vida, uma
pobre e equivocada conclusão desse corpo momentaneamente abandonado pela
capacidade de se perceber vivo. Vivo ele está, porém é aoenas um corpo inerte,
impotente, incapacitado de qualquer reação, estirado numa mesa e à mercê da
competência de um corpo médico a manipulá-lo. Está em suspenso. A alma
guardou-se em algum lugar de onde sequer sabe como é e aonde fica.
Minutos? Segundos? Horas? O tempo
é estranhamente adaptável ao momento e àquela realidade. Pode a morte ser isso:
uma ausência renitente do corpo? E se estivesse morto, saberia disso?
Tudo volta ao estado de
consciência quando os olhos se abrem e veem à sua frente um rosto conhecido,
que o desperta com exclamações esfuziantes , com lágrimas sendo vertidas,
dizendo que você é um milagre. Você não entende bem porque está visivelmente sonolento
– acabou de acordar para o mundo real, depois da breve hibernação no escuro e
em um local onde não se pode localizar por meios humanos racionais – acordando,
sim, de um sono sem sonhos, inapalpável e sem enredo.
Sobrevivi? Mas o que isso
significa? O corpo padeceu traumas essenciais à sua preservação e chamam esses
procedimentos de “escapou por um fio”. Isso explicaria a assertiva de que eu
sou um milagre?
O rosto estupefato e borbulhante
de felicidade era da filha que surgia no meu campo de visão como um anjo das
boas novas. Uma seguda-feira de outubro dentro de uma UTI, cores azuladas a
inundar os espaços, ela, o anjo, transborda aquela alegria genuína que não tem
vínculo algum com o seu próprio sucesso, mas do outro – o meu sucesso – onde
eu, sem saber, devo ter lutado para voltar de onde estava e consegui, não por
méritos próprios, mas pela vontade divina (meu tempo não se esgotara, calculo
hoje com meus botões) e pelas mãos do médico e sua equipe que me assistiram.
Foram dias longos de
inconsciência, recebendo quantidades maciças de medicamentos – muitos deles
equivalentes à morfina – e assim que fiquei mais desperto, era o movimento de
vai-e-vem de enfermeiros e enfermeiras, de médicos, do pessoal da limpeza que me
assombravam, porque ao meu estado de entorpecimento e sem entender nada, exceto
que tinha sobrevivido, aquilo tudo era um filme de terror, a ouvir lamentações
e impropérios de pacientes a gemerem o tempo todo, as imprecações que
substituíam qualquer tipo de diálogo apaziguador em detrimento das dores que
eram infligidas e o sofrimento consequente... era como estar no vestíbulo de
uma câmara de torturas e tudo como resultado da minha mente intoxicada, onde
meus olhos ao se fecharem enxergavam milhares de imagens surreais, aberradoras,
que me incomodavam, me atormentavam pelo excesso de detalhes e cores
alucinantes, luminescentes, rostos, grupos de seres medonhos incrustados em
paredes e ambientes movediços, trocando de imagens de tal maneira que até mesmo
ao abrir os olhos eu não conseguia me libertar daquele torvelinho enlouquecedor
a me perseguir.
Dias que pareceram semanas... e
quando recebia a notícia de que subiria para o quarto, foi como me livrar de um
pesadelo que insistia em me aprisionar. E mesmo nos dias que estive junto a
outros doentes, esses seres inseridos acho que na minha retina, na minha mente
insubmissa, eles não me deixavam em paz. Foi paulatinamente que comecei a
sentir que não era possível lutar contra; resolvi, pois, aceitar e deixar que o
escorrer das horas e dos dias fizessem o trabalho de sanear a minha realidade,
deixando que voltasse ao mundo real, o mundo onde as loucuras já não conseguem
assombrar mais ninguém.