quinta-feira, 24 de junho de 2010

O Céu e o Inferno

A mentira não é apenas faltar com a verdade, mas também ir além dela.

Porque estamos vivos, temos o direito de permitir que os outros vivam. Mesmo aqueles que nos ofendem, nos magoam, nos fazem sofrer. Mesmo aqueles que renegam o valor da vida tirando-a dos outros, como se a isso fossem autorizados. Mesmo aqueles que, respeitando as regras e as leis, no seu silẽncio permitem que outros façam o serviço sujo e maldoso de eliminar, destruir, tirar do caminho os seus oponentes ideológicos ou meramente os que interferem em seus mais rasteiros interesses.

A lingua é obra divina, porque é pequena como o leme de um navio. E assim como o instrumento náutico, que dirige a grandeza de uma fragata, também assim é com o homem: ela faz com que vá ao Paraiso, mas também o lança irremediavelmente no Inferno. Disse se agrada Deus, quando o tem para Si. Assim também se agrada o Diabo, porque toma para ele o que não lhe pertence. Mas como bom "fazedor de mentiras", ele se compraz com a nossa estultícia. Se agrada e estimula. Patrono dos mentirosos contumazes, dos mentirosos ideológicos, dos mentirosos por hábito, o Diabo é o senhor daqueles que gostam de desfazer o que está feito apenas pelo prazer de refazer equivocadamente todas as coisas que deveriam continuar do jeito que sempre foram. No caso presente, dos dias atuais, seriam os motivos que têm levado os homens a se autodestruirem, seja nas guerras, seja apenas pelo fato de crueldade e perversidade.

Os olhos têm a capacidade de discernir o que lhe passa à frente. Podem perscrutar os movimentos graciosos da menina nova que passa, a esbanjar sua graça e sua beleza, mas também serve para perceber a imundície dos cantos escuros sob as pontes e viadutos, o olhar que confiar o olfato quando se nota aquele fio de água supostamente limpa, que na verdade nada mais é que esgoto a céu aberto. Os olhos são as janelas da alma. Já definiram e redefiniram várias e várias vezes os olhos. Mas eles continuam a ser apenas a abertura que, com a ajuda da luz e do mínimo de inteligência possível dentro de um cérebro, pode ter consciência das coisas que giram ao redor de um corpo definido no tempo e no espaço. Eles são o motivo da grandeza ou da miséria. Eles veem a beleza, mas também podem cobiçar essa beleza e, por vingança ou resssentimento, destrui-la. Certas obras mostram isso claramente. Uma das mais famosas, e que mais marcaram a minha juventude, foi a obra de Victor Hugo, transposta para um belo filme em preto e branco, de 1939. O Corcunda de Notre Dame, na sua beleza plástica, transportaria a minha imaginação para os remotos anos dos século XVI, e ilusoriamente poderia antever a época em que a catedral de Notre Dame ainda estava sendo construída. E o desejo cobiçoso e luxuriante de Frollo e a beleza selvagem da cigana Esmeralda. E tudo realçado pela beleza irretocável de uma Maureen O'Hara bela, ruiva, de olhos verdes e no frescor dos seus dezenove anos. Os olhos de Frollo conspirariam contra ele, e seu cérebro atormentado iria colocá-lo sempre na encruzilhada do "eu que é que posso e devo fazer?". Entre o amor (carnal, visceral, luxurioso) e Deus (paz, harmonia, castidade), o pobre Frollo seria condenado por suas próprias vontades e desejos, porque os seus olhos um dia pousariam sobre o corpo de uma donzela esvoaçante e sensual, de origem cigana, e que tinha a liberdade gestual de sentir prazer na dança, nos volteios do corpo, nos movimentos graciosos de sua anatomia privilegiada, mas nem por isso ofensiva. O pobre Frollo perder-se-ia na vida apenas porque nunca entendeu que o que sentia era também uma variável dentro da obra da Criação. Por ora diria que Esmeralda foi sua perdição, mas porque Frollo tinha a carapaça mentirosa dos puritanos que, no escuro secreto de suas mais íntimas intenções e pensamentos, exaltariam a luxúria com estupros, fantasias eróticas e, talvez, por uma questão fisiológica, dar-se-iam o direito de concluir o prazer solitário com suas desesperadas mãos.

Mentira, prazer, olhos, mente, pensamentos, cérebro, Criação, Deus, Diabo... conceitos altamente confusos que inundam a vida do homem e fazem com que ele se torne uma forma ambulante e inconclusa de enciclopédia onde convivem verdades e mentiras, gestos nobres e atitudes ordinárias e vis, sentimentos angelicais e febres cozidas pelo fogo da paixão destruidora. O Céu e o Inferno vivendo no mesmo condomínio, e sob a atenção do mesmo síndico.

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