quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Ouço alguém dizer

Ouço alguém dizer que não há nada mais a fazer, e fico perplexo. Lembro-me de que Hemingway, no auge do seu desespero como escritor, concluíra a mesma coisa em relação à literatura, e por outros motivos prováveis meteu-se uma bala de espingarda na cabeça. O que ouço não me cai como algo plausível. Deveria eu pensar pessimistamente acerca das coisas dos outros, das relações humanas, dos resultados políticos como se o mundo houvesse sofrido uma descarga de estupidez, como se a humanidade tivesse sido criada à imagem e semelhança de um gênio de caráter duvidoso. Não cogito ficar discutindo os conceitos misteriosos da criação divina, nem questiono a existência ou não de Deus. O que me induz a refletir sobre a vida e suas conseqüências são as pessoas e suas mentalidades. Os sistemas, as regras, as atitudes, a educação formal, o que leva a pessoa a matar e morrer, o que faz uma nação ser nação e outra apenas um país de explorados, sem identidade e sem perspectivas, tudo resulta da capacidade intelectual do tecnicamente humano implementar. O nosso mundo, este que vemos e tocamos, este que defendemos e destruímos, este de quem falamos e várias outras vezes ignoramos, este mundo mensurável, tangível, finito é o mesmo planeta azul que desejamos definitivamente preservar – se para tanto há consciência de preservação – e em outras ocasiões a nossa fúria egoística seria capaz de acionar o botão e fazê-lo virar pó.
Ouço alguém falar de coisas absolutamente inexplicáveis, de como se conseguiu produzir tanta mixórdia e tantas infelicidades. Então a questão não é porque há desorganização social ou porque a justiça é ou não cumprida. O fator de análise é o homem, o ser humano e suas imprevisíveis reações. O que faz a diferença, na realidade, é viver o livre-arbítrio – um conceito avançado de decisão que separa o homem do bicho – e que prenuncia aquele brilho que tornará o homem um herdeiro automático do Criador. Como foi o surgimento, como e quando ocorreu a gênese, se eram iguais ou diferentes não se poderá dizer que seja possível explicar e mesmo entender. O filósofo é o que vai atrás de uma resposta e não se contenta com esquivas, nem em ficar com a dúvida e morrer com ela. Tudo tem uma explicação; e a inquietação filosófica é o traço marcante de que o gesto inicial de criação partiu de uma sabedoria que transcende a nossa própria inteligência. Questionar o inquestionável – não por menor razão alguns pensadores geniais chegaram a abraçar involuntariamente a loucura, que os engoliu – acaba sendo a função do filósofo, ainda que a ciência esquadrinhe todo o tempo e o tempo todo para provar que o somos significa um estágio anterior que fomos, e se fomos algo anterior, hoje somos e aconteceu não por acaso nem por acidente, mas por meios e métodos que nada mais são do que questões cientificas comprováveis.
Não é preciso ficar macambúzio cogitando coisas alienantes e incompreensíveis, como se fosse caso de vida ou morte avaliar o peso do ar, as cores dos olhos do caracol, a mutabilidade das nuvens nos céus, a direção imprecisa e improvável das folhas ao vento, pois que de tudo isso poderemos depreender que tudo está sobre uma linha reta e nada lhe foge ao controle. Aqui me faço lembrar um poema de Alberto Caeiro quando diz: “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na natureza não é porque saiba o que ela é, mas porque a amo, e amo-a por isso, porque quem ama nunca sabe o que ama nem sabe porque ama, nem o que é amar... Amar é a eterna inocência, e a única inocência é não pensar...”
Tamanha propriedade só poderia ser descrita por um poeta sensível e questionador, que se fingia poeta para se demonstrar um filósofo a filosofar, ainda que dissesse que a eterna inocência é não pensar ele próprio não cessava, jamais, de fazê-lo. O escritor pensa, o filósofo pensa, a criança apenas pensa nas coisas que lhe apraz exclusivamente. De resto, quanto menos se pensar melhor. Mas não pensar significa alienar-se; e viver alienado não é o ponto ideal da pessoa, mas uma forma de excluir-se. E o que é o mundo, afinal, senão um amontoado de gente que busca desesperadamente ser aceita, fazendo uso de todos os recursos necessários para que suas ações sejam admitidas e aprovadas. Talvez, então, se explique porque Hemingway matou-se; o seu desespero não era causa, mas efeito de um transtorno de interpretação diante do mundo que o circundava. E tão perplexo era que não pensou duas vezes até estourar os miolos. Porque não via mais nada que realmente valesse à pena. Se tivesse pensado com método, e não se deixasse envolver pelos seus próprios pensamentos perturbados, talvez tivesse conseguido evitar a atitude absurda do suicídio, porque se havia algum problema insolúvel por desvendar, pondo fim à vida ela apenas abreviou a solução transferindo-a para um tempo futuro que somente a ele pertence.
Ouço alguém dizer que nada mais de original de escreveu ou se disse, que os gregos já não tenham escrito ou dito. Mas isso é tão implausível! Séculos indevassáveis separam-nos daqueles tempos. O que talvez não tenha mudado são os sentimentos e os sentidos humanos, estes cada vez mais arraigados aos homens porque são o cerne de todas as questões e respostas de todas as perguntas. Ainda muito se escreverá e se falará. O homem ouvirá sempre alguém a dizer isto ou aquilo, ou simplesmente ignorará o que se diz apenas por comodismo ou porque não queira padecer dores transferíveis. Eu disse dores transferíveis? Mas o que eu quis dizer, afinal? Aquelas dores que postergamos para outro tempo, quando estivermos prontos para entendê-las? E quando é que entenderemos, de fato, sobre as nossas dores?Ouço alguém dizer que isto ainda não acabou...

Nenhum comentário:

Postar um comentário