sexta-feira, 17 de julho de 2009

As voltas da memória e as lembranças

Penso que são gestos comuns, anônimos e tardios, mas não suficientemente nulos.
Sempre haverá o doce alento de imaginar-se controlando o Tempo,
estabelecendo nossas regras sutis e conformadas, até porque o Destino
é um deus que caminha sobre nossas pegadas.
Há algum tempo eu escrevi um e-mail e postei-o a uma pessoa cujo nome ecoava dentro da minha memória como o clamor de um passado que ainda não estava enterrado e que, nessa transição de estar e não estar, permanecia naquela região cinzenta das nossas lembranças.
Todo mundo tem esse tipo de “período estacionário” onde guarda as pessoas, situações, datas, eventos, conversas, livros, paisagens, uma espécie de arquivo vivo que se gruda e não nos larga, a menos que deixemos de pensar e nos envolvemos com outras coisas. Mas com o passar do tempo esse esquecimento retorna, torna-se esquecimento presente, algo tão palpável quanto a mulher de nossos sonhos e das nossas noites febris.
Ou quando não conseguimos superar essas lembranças, e elas a perambular por nossas idéias se introduzem no nosso cotidiano, pode-se notar o seu cheiro forte e insuportável. Como visita mal-querida, se aboleta numa poltrona, arreganha seus dentes, aquele riso sardônico e amedrontador, espera que lhe ofereçamos um café com bolachas, e diz com todas as letras: ‘Desculpe-me, mas não pretendo retirar-me tão cedo’, mesmo que teimemos que já se faz tarde, que é hora de ir-se. ‘Não, de modo algum’ ela fala, e esse café com bolachas ganha a eternidade.
Todo escritor tem dentro de si um algo qualquer de melodramático. Dentro da sua cabeça giram idéias, conceitos, histórias. Ele até imagina cenas, caras, vestimentas, o tempo gasto entre uma ação e outra, e o papel – seu parceiro permanente, ainda que virtualizado pelo quadrado luminoso do monitor do computador –, passam a registrar toda essa epopéia, esse mundo do faz-de-conta, e ainda que momentaneamente eles tenham o poder divino de criar. Criam e eliminam, inventam e modificam todo um universo de idéias onde memória, História e personagens reais e fictícios interagem com toda naturalidade.
As linhas traçadas eram componentes que integravam uma história vivida há mais de três décadas. E como pululassem de um lado a outro, era preciso expurgar esse passado de um modo que não ofendesse nem magoasse quem quer que fosse. Esse papel teatral do escritor mostra que ele tem seu lado de esquisitices, porque é nele, e tão-só nele que as mordidas do passado ferem. Velhas companheiras, inerentes como sombras, falastronas e ruidosas, não fazem (nunca fizeram, é bem a verdade) questão de serem discretas e recatadas. Ao contrário, são bufonas, cheias de vida, gordas e barulhentas, incapazes de conter os risos que são gargalhadas ensurdecedoras a ecoar durante os dias e as noites, nas vigílias e nos sonhos.
À mensagem seguiu-se a resposta. E de certa forma uma espécie de frustração. Faltou ao amigo destinatário o poder de resgatar a imagem do remetente. O velho Samuca não se recordou do então rapaz magro, jovem e absolutamente ignorante do futuro que eu era. A minha vida caminhou para este momento atual como se ouvisse Pigalle ao acordeon.
Mas o filósofo permitiu-se responder, resposta dada ao desconhecido, até porque não tinha noção do que sucederia após aquilo tudo. Que poder tem uma carta, uma mensagem, um bilhete! Podem as palavras trazer à vida aqueles fantasmas que viviam no limbo de um esquecimento consentido, prisioneiros da individualidade e que se materializam quando são invocados.O velho Samuca respondeu. Este mero comedor de papiros – com a permissão de Kazantzakis, no seu Zorba, O Grego – conseguira recuperar um pedaço dessa história. Os idos de 70 perdem-se nas páginas dos livros e dos jornais. A Redentora foi-se, mas sem que saiba, a falecida, também ela é fantasma ressurreto dessa narrativa absolutamente dispensável, que só serve para refrescar a minha memória e afugentar o Alzheimer para bem longe.

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