sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

VISÕES DE UM SOBREVIVENTE


 Há situações na vida da gente que dinheiro algum  pode comprar. Quer um bom exemplo? ”Nossas recordações inesquecíveis  guardadas em nossa memória e no auge de nossa lucidez”. Quer outro? “O beijo mais amoroso, mais terno, mais profundamente extraído do coração, que é da nossa mãe”. Ou, quem sabe,” a emoção solitária ao ver seu primeiro filho através do vidro do berçário?”.

Nossa! Fico tão emocionado quando penso nessas coisas, que chego a me dar coriza e, espontaneamente, as lágrimas despencam dos meus olhos e eu não consigo esconder o que sinto... se saudade, se alegria ou apenas uma vontade imensa de poder reviver o que já se foi.

Lembrar a primeira vez que você olhou para alguém, e a demonstrar interesse por esse olhar curioso, recebeu em reciprocidade um olhar exatamente igual em intensidade. E essa troca de olhares revelaria que vocês dois são hoje a confirmação do destino ao reuni-los. Se diz que, um para o ouro, são “p amor de minha vida!”, que a gente fala como uma oração, um mantra, incapazes de viverem um longe do outro.

Há nessa relação de amor companheirismo e amizade, aqueles momentos no curso da existência que de tão dramáticos, levam as pessoas a se desesperarem, sentem medo, aquele frio congelante que explode na espinha e paralisa o cérebro de um modo tão doloroso, que ambos começam a sofrer dores absurdas, inexprimíveis, cqda um de um jeito e por motivações distintas, e mais uma vez isso apenas comprova que o elo que os une transcende as palavras, porque é um vínculo invisível e poderoso que não se explica, ele apenas confirma quão interligados essas duas almas estão; nesse casp não são os opostos que se atraem, mas os iguais.

De olhos fechados, , perdida a consciência, o corpo, se pensasse por si só, diria estar vazio de vida, uma pobre e equivocada conclusão desse corpo momentaneamente abandonado pela capacidade de se perceber vivo. Vivo ele está, porém é aoenas um corpo inerte, impotente, incapacitado de qualquer reação, estirado numa mesa e à mercê da competência de um corpo médico a manipulá-lo. Está em suspenso. A alma guardou-se em algum lugar de onde sequer sabe como é e aonde fica.

Minutos? Segundos? Horas? O tempo é estranhamente adaptável ao momento e àquela realidade. Pode a morte ser isso: uma ausência renitente do corpo? E se estivesse morto, saberia disso?

Tudo volta ao estado de consciência quando os olhos se abrem e veem à sua frente um rosto conhecido, que o desperta com exclamações esfuziantes , com lágrimas sendo vertidas, dizendo que você é um milagre. Você não entende bem porque está visivelmente sonolento – acabou de acordar para o mundo real, depois da breve hibernação no escuro e em um local onde não se pode localizar por meios humanos racionais – acordando, sim, de um sono sem sonhos, inapalpável e sem enredo.

Sobrevivi? Mas o que isso significa? O corpo padeceu traumas essenciais à sua preservação e chamam esses procedimentos de “escapou por um fio”. Isso explicaria a assertiva de que eu sou um milagre?

O rosto estupefato e borbulhante de felicidade era da filha que surgia no meu campo de visão como um anjo das boas novas. Uma seguda-feira de outubro dentro de uma UTI, cores azuladas a inundar os espaços, ela, o anjo, transborda aquela alegria genuína que não tem vínculo algum com o seu próprio sucesso, mas do outro – o meu sucesso – onde eu, sem saber, devo ter lutado para voltar de onde estava e consegui, não por méritos próprios, mas pela vontade divina (meu tempo não se esgotara, calculo hoje com meus botões) e pelas mãos do médico e sua equipe que me assistiram.

Foram dias longos de inconsciência, recebendo quantidades maciças de medicamentos – muitos deles equivalentes à morfina – e assim que fiquei mais desperto, era o movimento de vai-e-vem de enfermeiros e enfermeiras, de médicos, do pessoal da limpeza que me assombravam, porque ao meu estado de entorpecimento e sem entender nada, exceto que tinha sobrevivido, aquilo tudo era um filme de terror, a ouvir lamentações e impropérios de pacientes a gemerem o tempo todo, as imprecações que substituíam qualquer tipo de diálogo apaziguador em detrimento das dores que eram infligidas e o sofrimento consequente... era como estar no vestíbulo de uma câmara de torturas e tudo como resultado da minha mente intoxicada, onde meus olhos ao se fecharem enxergavam milhares de imagens surreais, aberradoras, que me incomodavam, me atormentavam pelo excesso de detalhes e cores alucinantes, luminescentes, rostos, grupos de seres medonhos incrustados em paredes e ambientes movediços, trocando de imagens de tal maneira que até mesmo ao abrir os olhos eu não conseguia me libertar daquele torvelinho enlouquecedor a me perseguir.

Dias que pareceram semanas... e quando recebia a notícia de que subiria para o quarto, foi como me livrar de um pesadelo que insistia em me aprisionar. E mesmo nos dias que estive junto a outros doentes, esses seres inseridos acho que na minha retina, na minha mente insubmissa, eles não me deixavam em paz. Foi paulatinamente que comecei a sentir que não era possível lutar contra; resolvi, pois, aceitar e deixar que o escorrer das horas e dos dias fizessem o trabalho de sanear a minha realidade, deixando que voltasse ao mundo real, o mundo onde as loucuras já não conseguem assombrar mais ninguém.

 

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