terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Não é tempo de esquecer

É sempre uma condição própria da condução humana no curso da sua trajetória, esquecer com o passar dos dias, meses. anos, tudo aquilo que lhe foi retirado à força, pela morte, pelo desaparecimento súbito, inesperado, alguém ou algo - humano ou quase - que lhe custava tanto pensar que teria que se separar dele, um dia desses. E esse dia, malgrado dia que poderia não acontecer, esse dia chega e escancara as portas do insondável. Nós que somos tão arrogantes e pretensiosos conhecedores das verdades absolutas, quedamo-nos diante do fato inexorável da ruptura que não deixa margem alguma, nem rastro, nem condições que sejam para se negociar uma eventual prorrogação. 

Não esquecer, jamais. Lembrar-se sempre e incansavelmente. Por memória, por lapsos eventuais, talvez um cheiro, um odor que seja, que faça lembrar de quem partiu. Um som, um simples resfolegar, tudo tem que ser rigorosamente convertido em prova, evidência de uma passagem que se tornou breve, mas que foi importante a ponto de nos arrancar das profundezas da nossa mesquinhez diária e fazer com que copiosamente vertêssemos lágrimas ao ver a partida, a plena convicção de que apenas fotos e imagens esparsas servirão, doravante, como testemunhas de uma existência que se esboroou no ar, qual fumaça, a brisa que antecede a chuva, o cheiro doce e inequívoco da terra molhada, o rimbombar do trovão, e o que era antes, agora, neste momento, é uma lembrança. Não deixou vestígio, não constituiu família, viveu solitária e espartanamente recebendo o que lhe era oferecido, vez por outra consentia a si mesma o prazer efêmero de um carinho, e logo em seguida deixando-se adormecer na sua bonomia instintiva de não-humana.

Fez sua presença marcar a alma, a nossa calejada alma, nessas quase duas décadas, sem a pretensão de se afamar, de galgar privilégios e tudo se resumia apenas em ter um lugar quente para ficar, bons cuidados alimentares, uma água límpida para dessedentar-se e a certeza -  que só ela podia especificar o jeito e a forma dessa certeza - de ser amada. 

Assim, num certo dia 29 de dezembro, antevéspera de um ano que findava, quis o destino ou, mais exatamente, o bom senso da Fortuna, que ela cerrasse os olhos do espírito, interrompesse o pulsar do coração e o último suspiro a esconder-se entre suas peles flácidas e seus ossos a se atreverem àquela exposição de quem padece em silêncio, e partisse, quieta, submissa, finalmente sem sofrimento.

Quando se diz, sem qualquer intenção de vaidade, que não é tempo de esquecer, diz-se que na verdade é necessário cultivar a lembrança e transformar a saudade que fica em uma energia poderosamente favorável e construtiva, sem veleidades, sem mistificações, apenas fechar os olhos e projetar o pensamento enquanto o filme da memória lança na tela da mente as imagens que só podem ser percebidas de forma exclusiva e intransferível. No máximo, a pobreza da descrição verbal ou escrita para sinalizar que ela esteve aqui, viveu e se foi, sem que o universo desse uma brecada para homenageá-la. Nada disso! Almas gentis partem sem deixar rastros no ar; apenas partem, porque tudo e todos terão que fazer isso algum dia. E o dela, o seu dia, chegou. 



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