sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A Chuva

Ah, a chuva. Essa chuva com vários rostos que cai no verão é a mesma filha que se faz rebelde e devasta tanto homens como natureza.

A chuva cai, contínua, plena, incansável, cheia de boas intenções. Nada a impede. Mesmo o telhado a certa altura não consegue suportar tanta pressão e cede, cede inexoravelmente, porque a chuva, como a enchente, não vê obstáculos. Ela vem, abre seus caminhos, atende tudo e todos sem parcimônia; e quando há impedimento, ela simplesmente desvia o curso e avança, não se assuste nem se amofina com o tamanho da dificuldade.

Esses meses de janeiros e fevereiros e marços cheios de tanta umidade, tanto calor, tanto sol, tanta gente se agitando, a gozar dias quentes, noites abafadas de ar condicionado ligado e janelas abertas. De cidades envolvidas no concreto do asfalto e no assalto dos sentimentos mais confusos e misturados. A cidade é o retrato de todos; as sombras não são iguais àquelas sombras do passado, dos terrores, dos vampiros, dos zumbis. Hoje as sombras escondem outras formas mortas-vivas a vagar por suas avenidas, metidas em perfumes odorosos, rostos construidos, olhares opacos e sem brilho, em meio à fumaça dos canos de escapamento, da pressa incontrolada, do tempo curto, das notícias trágicas, de homens e mulheres nervosos e afoitos, vítimas das suas ansiedades e desejos.

A mesma chuva de ontem é a que cai hoje, com a diferença de que as ruas e as cidades são exatamente nada parecidas. O horizonte é uma faixa cinza-claro, a névoa é apenas a garoa intermitente que lava a cidade por longos períodos, que faz disso uma rotina previsível, mesmo quando os técnicos em metereologia traduzem suas cartas climatológicas com expressões nada poéticas e enxutas de conotações sentimentais. Não, não há mais aquele poeta que faz poesia mesmo a dizer que o tempo está nublado e pode haver pancadas ocasionais no final do período. Quase sempre é uma voz de alguém competente, mas que não traz no sangue a singeleza de falar as mesmas coisas que sempre foram ditas de uma maneira suave, apaixonante, quase um sussurro no ouvido.

A chuva encontrará, sempre, e cada vez mais, essa cidade enlouquecida, agitada, correndo atrás de seus interesses e não observando quando é noite ou dia. Uma cidade que parece não se cansar. Uma cidade que não entende porque o cãozinho dorme na soleira de uma porta, ou porque os pombos voam e se reproduzem e estão sempre a procurar o que quer que seja para comer. Uma cidade que não tem respeito por ninguém, com buracos, fendas, umidades sebosas no seu verde lodoso, uma cidade que foi berço de sonhadores e idealistas, e que hoje se vê à mercê da tecnocracia dos pragmáticos, dos pregadores catastrofistas, dos viciados e traficantes, do sexo profuso e fácil, das crianças esquecidas e sem futuro, geradas espontaneamente para viverem segundos irreais e com seus narizes enfiados em sacos de cola. Uma cidade poluida de gente amontoada nos trens, nos onibus, nas lotações; uma gente que perdeu a delicadeza de pedir licença, de se desculpar, de sorrir. Gente que, tratada como gado, age como tal. Gente comum, sem nome, quase sem rosto, que dá o que recebe, que perdeu o senso crítico de perceber que elas estão se tornando grosseiras e vulgares.

Somente a chuva parece não ter mudado. Todo ano, à época certa - e em condições extemporânea - ela vem e ameniza; outras vezes afogada, destrói; outras apenas rega e reverdece o que já parecia morto. Ela pode significar vida ou morte. Mas ela só será morte porque a figura humana interveio no meio ambiente e fez onde não devia fazer aquilo que deveria fazer onde era possível e permitido ser feito. Enfim, a chuva vem e comprova que a ganância não é apenas uma virtude atual, desta Era Tecnológica, de homens feitos de circuitos integrados e mentes com bilhões de gigas de memória. Ela é a mesma desde quando Noé enfrentou os seus quarenta dias e quarenta noites de completa solidão em meio ao vazio em que aquela terra se viu mergulhada.

A mesma chuva vem e vai. Os homens, ao contrário dela, vão e muitas vezes não voltam. E quando voltam, eles voltam mudados. Ou mortos por dentro. Ou apenas reduzidos à condição de meros espectadores, sem delicadeza, sem sentimento, sem poesia, sem olhos para enxergar um horizonte cor de laranja de um sol que se encobre para os seus olhos apenas. Um sol que nunca cessa de brilhar.

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